Brasília (DF), 1º de setembro de 2015.

TEXTO DINAMIZADOR: 

Adolescência no contexto da desigualdade social

Enid Rocha Andrade da Silva[1]

Raissa Menezes de Oliveira[2]

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Os adolescentes brasileiros de 12 a 18 anos incompletos totalizavam 21,1 milhões no ano de 2013[3] . Eles correspondiam a 11,0% da população brasileira, sendo 51,2% de homens e 48,8% de mulheres.

A região Sudeste concentrava a maior proporção dos adolescentes, com 38,7%; seguida pela região Nordeste, com 30,4%; região Sul (3,3%); Norte (10,2%) e Centro-Oeste (7,4%). No quesito raça/cor, 58,9% dos adolescentes se autodeclararam negros (pretos e pardos), 40,4% se autodeclararam brancos e menos de 1,0% se declarou de outras raças – amarela ou indígena. Mais de 80,0% viviam em domicílios situados em áreas urbanas, na proporção de quase cinco adolescentes para apenas um, vivendo em residências situadas em áreas rurais (IBGE, 2014).

Estudo e Trabalho

Na última década, o Brasil assistiu a expressivos avanços na ampliação do acesso aos direitos sociais e na educação. Houve um esforço para preparar os adolescentes para a entrada na vida adulta e promover, no tempo certo, a inserção qualificada no mercado de trabalho. Entre 1992 e 2013, a proporção de brasileiros com idades de 15 a 17 anos que frequentavam a escola elevou-se de 59,7% para 84,4%.

De 2004 a 2013, o percentual de adolescentes da mesma faixa etária que frequentava o ensino médio aumentou de 44,2% para 55,2%. Hoje, os programas de maior destaque para dar continuidade aos avanços na área e para garantir boas perspectivas de futuro para os adolescentes, são o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec); o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (Projovem Urbano); o Programa Universidade para Todos (ProUni); o Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti); dentre outros.

Porém, as informações sobre a escolaridade dos adolescentes brasileiros mostram que ainda há de se melhorar a defasagem entre a idade e o grau de escolaridade atingido, principalmente entre aqueles na faixa de 15 a 17 anos, que deveriam estar cursando o ensino médio ou já tê-lo concluído. Em 2013, cerca de um terço dos adolescentes de 15 a 17 anos ainda não havia terminado o ensino fundamental e apenas 1,32%tinha concluído o ensino médio. Na faixa etária de 12 a 14 anos, que corresponde aos últimos anos do ensino fundamental, os dados mostraram que a imensa maioria (93,3%) tinha o fundamental incompleto; apenas 3,7% havia completado esse nível de ensino (IBGE, 2014).

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2013[4] ) revelam que o Brasil tem ainda enormes desafios para garantir que todos os jovens adolescentes estejam estudando e concluam a escolaridade básica. Em 2013, dos 10,6 milhões de jovens de 15 a 17 anos, mais de 1 milhão não estudavam nem trabalhavam; 584,2 mil só trabalhavam e não estudavam; e aproximadamente 1,8 milhão conciliavam as atividades de estudo e trabalho[5].

No Brasil, o trabalho é proibido para menores de 14 anos, e, desta idade até os 15 anos, só é permitido na condição de aprendiz. Entre os 16 e 17 anos, o trabalho é liberado, desde que não comprometa a atividade escolar e que não ocorra em condições insalubres, nem com jornada noturna.

Entre os jovens que não estudavam e não trabalhavam, observam se as características típicas de exclusão social do País: a maior parte (64,8%) é da raça negra, 58,0% são mulheres e a imensa maioria (83,5%) é pobre e vive em famílias com renda per capita inferior a 1 salário mínimo (SM). Os jovens adolescentes que já estão fora da escola e só trabalham apresentam perfil semelhante ao dos adolescentes anteriormente destacados, com a diferença de que, neste grupo, os homens são a maior parte e representam 70,6%, enquanto as mulheres são menos de um terço (29,3%). Os adolescentes que só trabalham também são, na maior parte, negros (61,5%) e pobres (63,7%). O perfil de exclusão também se repete entre os adolescentes que necessitam conciliar trabalho e estudo; são, na maioria, do sexo masculino (60,7%), negros (59,8%) e pobres (63,03%).

Os dados apontam que 85,8% dos adolescentes de 15 anos que trabalham ganham menos de 1 SM; mais de 60,0% dos jovens de 15 a 17 anos sequer chegam a auferir isso por mês. A imensa maioria exerce atividade laboral na informalidade, sem qualquer proteção social. Quanto à escolaridade, dos adolescentes que trabalham, 90,0% daqueles com 15 anos não concluíram o ensino fundamental e 69,4% dos jovens de 16 a 17 anos também não completaram esse nível de ensino (IBGE, 2014). Praticamente todos os jovens adolescentes de 15 a 17 anos que trabalham (100% e 99,0%) vivem em famílias muito pobres.

Vitimização e acesso à justiça por parte da população de 15 a 17 anos

Em suplemento especial, a Pnad (IBGE, 2009b) identificou que 1,6% do universo de pessoas entrevistadas já havia sofrido algum tipo de agressão física. Entre os jovens adolescentes (12 a 17 anos), essa proporção sobe para 1,9%. Destes, cerca de 60,0% eram negros e 40,0%, brancos. Do total dos adolescentes agredidos, 2,8% dos brancos e 4,0% dos negros tiveram como agressor um policial ou um agente de segurança privada. As agressões físicas contra os adolescentes cometidas por parentes alcançaram a proporção de 7,3%. É de se notar, no entanto, que mais da metade das agressões sofridas por adolescentes foram cometidas por pessoas conhecidas (56,8%). Do total dos jovens (405,7 mil) que sofreram agressão física no período, cerca de 14 mil não reportaram a última agressão sofridaà delegacia de polícia.

Os motivos elencados guardam uma assimetria racial, marcada principalmente pela maior importância concedida, pelos adolescentes negros em relação aos brancos, às citações como “medo de represália” e “não queria envolver a polícia”. Entre os adolescentes negros que não registraram a agressão à polícia, os principais motivos citados (que, juntos, somam mais de 80%), foram os seguintes: i) “não queria envolver a polícia” (13,9%); ii) “não era importante” (16,1%); iii) “medo de represália” (22,9%); e iv) “a polícia não quis fazer o registro” (27,8%). Já para os adolescentes brancos, foram dois os principais motivos citados: i) “a polícia não quis fazer o registro” (31,7%); e ii) “não acreditava na polícia” (33,9%).

A desigualdade social também atinge fatalmente a vida dos adolescentes, tendo em vista que 29,0% deles morrem por causas externas: 13,9% por homicídio, 6,9% em acidentes de transporte e 1,0% por suicídio, segundo o relatório de pesquisa da Flacso (2015).

Há de se destacar as mortes por homicídios entre adolescentes de 16 e 17 anos e a forte tendência racial das vitimizações: a taxa de homicídios de adolescentes brancos no período de pesquisa foi de 24,2 por 100 mil. Já a taxa de adolescentes negros, foi de 66,3 em 100 mil. Proporcionalmente, morreram quase três vezes mais negros que brancos (Waiselfisz, 2015).

São os jovens os que mais sofrem as consequências do fracasso do atual sistema de controle de drogas e da legislação que realmente inibe a proliferação de armas de fogo. A média de investigação de homicídios no Brasil é de apenas 5,0% a 8,0% (Waiselfisz, 2014). Assim, a frequente vitimização dos jovens negros e a cultura da impunidade podem estar na raiz dos motivos que fazem com que esses jovens não procurem a polícia ao sofrerem agressão física.

Outro aspecto importante a ser sublinhado se refere ao racismo vigente na sociedade, que condena, antecipadamente, os adolescentes da periferia e das favelas, sobretudo os negros, pelo fato de não corresponderem aos padrões idealizados da sociedade: branco, bem vestido, escolarizado, trabalhador com carteira assinada, entre outros atributos valorizados socialmente. Esse olhar deve estar presente quando se analisa, por exemplo, o perfil do adolescente em conflito com a lei que cumpre medida de privação de liberdade no Brasil. Eles são, na maioria, negros, pobres e enfrentam as dificuldades do ensino e do trabalho já aqui demonstradas (BRASIL, 2015).

Esses adolescentes têm mais obstáculos em sua inserção social, o que amplia as chances de inscreverem em suas trajetórias cometimentos de atos reprováveis. Contudo, também é verdade que os jovens oriundos de famílias mais abastadas se envolvem tanto ou mais com drogas, uso de armas, gangues, atropelamentos, apedrejamentos etc. A diferença é que possuem mais recursos para se defenderem, sendo mais raro terminarem sentenciados em unidades de privação de liberdade, ao passo que os adolescentes mais pobres, além de terem seu acesso à justiça dificultado, ainda são vítimas de preconceitos de classe social e de raça, comuns nas práticas judiciárias.

Desigualdade social e a vulnerabilidade social do adolescente

As considerações feitas até aqui remetem à importância de se pensar a problemática da vulnerabilidade social, potencializada pela sua situação socioeconômica. Por vulnerabilidade social entende-se o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e a mobilidade social dos atores (Abramovay et al., 2002, p. 13).

A especificidade social da condição do adolescente torna esse segmento especialmente exposto à vulnerabilidade social. A definição pouco precisa do seu papel na sociedade contemporânea – em termos de autonomia relativa, (in)dependência financeira, responsabilidades e direitos ambíguos, no que se refere à participação no mercado de trabalho, por exemplo – submete essas pessoas aos efeitos mais imediatos das adversidades econômicas e sociais. Isso lança uma série de incertezas quanto à sua trajetória futura.

A vulnerabilidade social constituiria uma categoria de mediação entre a desigualdade/exclusão social e a violência entre jovens, mediação esta cujo mecanismo explicativo pode ser identificado nas frustrações que influem decisivamente sobre o processo simbólico de construção da identidade do adolescente. Mais do

que a pobreza, portanto, é a desigualdade social que suscita maior sofrimento entre os jovens de baixa renda, devido à comparação feita entre a sua própria condição e a imagem do outro, socialmente valorizada. A desigualdade social exprime uma circunstância relativa de privação de direitos que amplifica a vulnerabilidade social da população pobre.

Neste sentido, a existência de deficiências e barreiras de acesso dos jovens pobres à educação e ao trabalho decente – os dois principais mecanismos considerados lícitos de mobilidade e inclusão social da nossa sociedade –, bem como às estruturas de oportunidades disponíveis nos campos da saúde, do lazer e da cultura, contribuem para o agravamento da sua situação de vulnerabilidade social.

Outra é a necessidade de se encontrarem mecanismos que tragam para a escola e que orientem para a qualificação, em postos de trabalho decentes, milhares de meninos e meninas de 15 a 17 anos, promovendo a igualdade e desenvolvendo a segurança de que a mobilidade social pode ser feita pelo caminho lícito da ampliação da escolarização, da qualificação e, fundamentalmente, da cidadania.

 

Referências Bibliográficas

ABRAMOVAY, M. et al. Juventude, violência e vulnerabilidade social na América Latina:

desafios para políticas públicas. Brasília: Unesco, 2002.

BRASIL. Nota – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo 2013. Brasília: SDH, 2015.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de

Domicílios: 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2009a. v. 30. Disponível em: http://bit.ly/2cIDEyx.

Acesso em: 12 set.2016.

______. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: 2009. Rio de Janeiro: IBGE, 2009b.

(Suplemento).

______. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios: 2013. Rio de Janeiro: IBGE, 2014.

  1. 33. Disponível em: http://bit.ly/2cnmWGt. Acesso em: 12 set.2016.

WAISELFISZ, J. J. Violência letal contra as crianças e adolescentes do Brasil. São Paulo:

Flacso Brasil, 2015.

[1] Técnica de Planejamento e Pesquisa da Diretoria de Estudos e Políticas Sociais DISOC/Ipea.

[2] Pesquisadora do Subprograma de Pesquisa para o Desenvolvimento Nacional (PNDP) na DISOC/Ipea.

[3] Disponível em: http://bit.ly/2crEZfI. Acesso em 12 set.2016.

[4] Disponível em: http://bit.ly/2aZKRMX. Acesso em: 05 ago.2016.

[5] No Brasil, o trabalho é proibido para menores de 14 anos, e, desta idade até os 15 anos, só é permitido na condição de aprendiz. Entre os 16 e 17 anos, o trabalho é liberado, desde que não comprometa a atividade escolar e que não ocorra em condições insalubres, nem com jornada noturna.

 

PÚBLICO PARTICIPANTE:

Participaram 100 pessoas desta roda. Dentre elas, redatores e mobilizadores quando da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, além de estudantes e figuras públicas que lidam cotidianamente com os desafios contemporâneos da política de Proteção Integral da criança e do adolescente.

TEMÁTICAS: 

  • 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente.
  • Redução da maioridade penal.
  • Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes.
  • Consolidação de direitos civis e sociais de crianças e adolescente.
  • Mobilização social.

 

OBJETIVO:

Reunir os principais atores responsáveis por mobilizar e escrever o Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como os envolvidos com os desafios na implementação da política atual, de modo a analisar o legado dos 25 anos do ECA, seus avanços e desafios contemporâneos, retomando o contexto histórico do processo de sua construção.

COMO FOI:

Foram oito horas de balanço da trajetória do Estatuto feito por redatores e mobilizadores, quando de sua promulgação, além de figuras públicas que lidam cotidianamente com os desafios contemporâneos da política de Proteção Integral da Criança e do Adolescente. A abertura, com o contexto da discussão – referências ao marco legal e situacional que possibilitaram a redação e promulgação do ECA – e a mesa técnica – com apresentação de duas pesquisas sobre o tema da infância, adolescência e juventude, realizadas pelo Unicef e IPEA -, trouxeram subsídios para a Roda de Diálogo.

História e memória  

Participaram deste debate, importantes interlocutores, como o professor e pesquisador Benedito Rodrigues dos Santos; o ex-ministro Pepe Vargas; o professor e pesquisador Vicente de Paula Faleiros; o procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná Olympio de Sá Sotto Maior Neto; a Irmã Maria do Rosário Leite Cintra, presidente do Instituto da Criança e do Adolescente (Indica); Gary Sthal, representante do Unicef; e o Coordenador do Programa Cidadania dos Adolescente do Unicef, Mário Volpi. Eles afirmaram, em suas falas, que nesses últimos anos foram consolidados diferentes direitos civis relativos à criança e ao adolescente e à legislação de participação social, concretizada por meio dos conselhos e conferências. Contudo, ainda são muitos os desafios que restam para que o País implemente, de fato, uma rede integrada de proteção às crianças e aos adolescentes, de modo a concretizar as aspirações plasmadas no ECA, sancionado em 13 de julho de 1990, por meio da Lei nº 8.069.

 

Perguntas geradoras

1) O Estatuto da Criança e do Adolescente foi gerado no processo de redemocratização do Brasil, no momento de retomada de direitos civis e políticos, suspensos pelo golpe de 1964. Em sintonia com a Constituição Federal e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, revolucionou a percepção sobre crianças e adolescentes, merecedoras, a partir de então, de proteção integral. Tal responsabilidade deve ser compartilhada entre Estado, sociedade e família. Vinte e cinco anos depois, é possível traçar paralelos entre o contexto histórico de aprovação do ECA e a atual conjuntura política do País, na perspectiva de resgatar o passado para compreender o presente e projetar o futuro?

2) Até os anos 1980, as políticas públicas destinadas a crianças e adolescentes, notadamente aos menos favorecidos em termos socioeconômicos e étnico-culturais, eram orientadas pelo Código de Menores. Como toda norma, o Código refletia um modo de pensar e agir da sociedade e suas diferentes esferas: a família, o Estado, a escola, a mídia, etc. O ECA rompe, efetivamente, com essa normativa. Além deste rompimento no âmbito legal, e a partir mesmo dele, que outras rupturas vocês poderiam apontar? Em outras palavras, que desafios éticos, políticos, técnicos ou de gestão das políticas os que construíram o ECA buscavam superar?

3) Um dos impactos provocados pelo ECA foi o modo de formulação, implementação e controle de políticas públicas. Vinte e cinco anos depois da aprovação da lei, o Brasil apresenta indicadores positivos e significativos no âmbito da garantia de direitos sociais básicos, como educação e saúde. No entanto, ainda permanecem desafios em relação ao enfrentamento de violências contra crianças e adolescentes. O modo transversal, intersetorial, descentralizado e integrado proposto pelo ECA e operado pelo Estado permanece válido? No âmbito normativo, haveria algo a ajustar ou modificar, para avançarmos e aprimorarmos o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente?

 

Desafios 

  • Educação e desigualdade social

Educação e desigualdade social: esses dois temas foram apresentados como um desafio pelos debatedores. Eles reforçam a necessidade de conhecer este tema para, assim, entendermos o estado da arte do ECA. A educação como direito universal, envolve mais que educação de qualidade: envolve escola digna, preparada, com infraestrutura física e pedagógica, além de professores com formação que supere a base curricular e que vá em direção à garantia de direitos humanos.

Outro ponto destacado foi a existência da Lei nº 11.525, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases, e tornou obrigatório o ensino do ECA no currículo do ensino fundamental. O desconhecimento do Estatuto é um problema que exige ações de formação de gestores e professores.

Esse desafio também enfatizado por Ezequiel Faria de Sena, de 13 anos, integrante do G38 do Conanda e do Movimento Cultural Super Nova. Ele criticou a ausência do ensino do ECA no currículo escolar. “Na minha comunidade, as crianças e os adolescentes desconhecem o que foi feito, em tese, para eles. O Estatuto deveria ser tratado na escola, mas não é; a sociedade não consegue ver os seus próprios direitos”.

Aíla Oliveira, de 17 anos, militante do Coletivo Enegrecer, faz a mesma leitura que Ezequiel e acrescentou que, na ausência do ensino sobre o ECA, crianças e adolescentes “acabam recebendo informações oriundas do sensacionalismo midiático, que diz que a lei protege o ladrão”. Os meios de comunicação, segundo ela, reproduzem um olhar “racista, elitista e separatista sobre meninos de rua e jovens negros e negras, como se fossem máquinas aptas ao crime, que podem ser marginalizados”.

  • Medidas socioeducativas

Os debatedores desta mesa, apontaram para a necessidade de aprimorar a implementação de medidas socioeducativas aplicadas a adolescentes, atribuídas quando da prática de ato infracional.

  • Gênero, raça e sexualidade

Entre os debatedores, destacamos a fala da Aila, que discorreu sobre a necessidade de superar o alijamento de crianças e adolescentes do processo de elaboração das políticas que lhes dizem respeito e sobre a estigmatização de grupos específicos de crianças e adolescentes, como os jovens negros e negras. “Mesmo que o ECA tenha trazido rupturas com a legislação passada, ele não rompe com a lógica elitista e não aborda a questão do racismo, que contribui para a evasão escolar, gera invisibilidade, exclusão e violência. Outra ausência grave no ECA é o recorte de gênero, pois as meninas sofrem com o machismo — e as meninas negras, com o machismo e racismo”. O tema da sexualidade dos adolescentes também não é abordado, lembrou. “O silêncio e a omissão em relação a essa questão colabora para o aumento de problemas, como, por exemplo, o aumento da incidência de HIV em jovens e a morte de meninas, vítimas de abortos clandestinos na periferia”.

Afirma-se ainda que, vinte e cinco anos depois de sua promulgação, é natural que alguns aspectos do ECA devam ser revistos, por não contemplarem questões identitárias e de diversidade, por exemplo. “Na época da aprovação do Estatuto, os desafios eram outros: tratava-se de acabar com o apartheid entre menor e criança, o que acabou por deixar em segundo plano o fato de que essas crianças tinham gênero, raça, orientação sexual, etc. Eram dilemas e lutas diferentes. Nos dias de hoje, entretanto, tornou-se essencial que o Estatuto passe a conversar com a criança indígena, cigana, quilombola, além de falar sobre temas como a educação sexual”, comentou Vicente Faleiros. O professor Benedito Rodrigues dos Santos avalia que, justamente por essas ausências, o ECA pode ser alterado, “mas para melhorar”.

  • Homicídios de crianças e adolescentes

O relatório “ECA 25 anos[4]” revelou que o número de homicídios de brasileiros de até 19 anos de idade dobrou. De 1990 a 2013, passou de 5 mil para 10,5 mil casos ao ano (Datasus, 2013[5]). Isso significa que, a cada dia, 28 crianças e adolescentes são assassinados[6]. No Brasil, entre 2008 e 2011, o número de pessoas assassinadas foi maior do que nos 12 maiores conflitos armados ocorridos no mundo de 2004 a 2007, entre eles, as guerras no Iraque e no Congo[7]. Dos adolescentes que, em 2012, morreram no País, 36,5% foram assassinados. Na população total, esse percentual é de 4,8%[8]. Esse cenário perturbador coloca o Brasil em segundo lugar no ranking dos países com maior número de assassinatos de meninos e meninas de até 19 anos, atrás apenas da Nigéria[9]. O homicídio de crianças e adolescentes é o que nos impede, hoje, de comemorar plenamente as conquistas do ECA. 

  • Conselhos

Alertou-se igualmente para a importância de fortalecer os conselhos de direitos e os conselhos tutelares, buscando ampliar a participação efetiva dos movimentos de crianças e adolescentes. Foram destacadas três ações principais em relação aos conselheiros tutelares: formação para conselheiros, estruturação das redes de conselhos e padronização desses organismos.

Benedito dos Santos relatou a ausência total de direitos para as crianças e adolescentes até a promulgação do ECA, além da completa falta de participação da sociedade civil nos espaços de elaboração de políticas. Para organizar a participação social, criaram-se os conselhos de direitos e, para mediar os conflitos, os conselhos tutelares. “Hoje em dia, falamos de 120 mil pessoas trabalhando diariamente para tirar o ECA do papel, a maior rede dessa natureza no mundo, segundo a ONU”.

Ainda assim, para o especialista, a realidade está longe de funcionar como um sistema integrado. Mesmo com os conselhos de direitos, não mudou muito a forma de fazer política. Houve melhorias em educação e saúde, mas não há uma política integral de atenção às crianças e aos adolescentes. Para ele, “é necessário garantir que as eleições dos conselheiros tutelares atendam aos interesses desse público e que os modelos de conselhos de direitos sejam revisitados, para que possam cumprir seu papel de controle e deliberação”.

  • Comunicação

 Segundo Vicente Faleiros desafio central na questão da divulgação e compreensão do ECA diz respeito à comunicação e à imprensa. A mídia brasileira dominante, propriedade dos grandes conglomerados mundiais de criação, é um desafio, pois ainda hoje mantém uma visão retrógrada e menorista. A conjunção entre capitalismo e mídia conservadora é responsável por possibilidades de retrocesso de direitos adquiridos que o País enfrenta no contexto atual.

 

NÚMEROS

ECA 25anos[10]

  • O Brasil é uma referência no mundo na redução de mortalidade infantil. Entre 1990 e 2012, a taxa caiu 68,4%, chegando a 14,9 mortes para cada 1.000 nascidos vivos, de acordo com o Ministério da Saúde[11]. Esta taxa está bastante próxima do nível considerado aceitável pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 10 mortes por 1.000 nascidos vivos.
  • Hoje, as maiores vítimas da mortalidade infantil são as crianças indígenas. Elas têm duas vezes mais risco de morrer antes de completar 1 ano do que as outras crianças brasileiras.
  • Atualmente, mais de 60% dos partos ocorridos no Brasil são de mães que fizeram, no mínimo, sete consultas de pré-natal. Há 20 anos, menos da metade das gestantes brasileiras realizava o número de consultas recomendado.
  • De 1990 a 2013, o percentual de crianças e adolescentes em idade obrigatória fora da escola caiu 64%, passando de 19,6% para 7% (Pnad[12]).
  • Houve queda na taxa média de analfabetismo entre brasileiros de 10 a 18 anos de idade: de 88,8%, passando de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013, sendo ainda mais significativa entre os adolescentes negros, de aproximadamente 91% (Pnad[13]).
  • Um dos principais desafios é a inclusão de crianças de 4 e 5 anos de idade e de adolescentes com idades entre 15 e 17 anos. Em 2013, quase 700 mil crianças de 4 e 5 anos ainda estavam fora da escola porque as atuais pré-escolas são insuficientes para atender à demanda (Pnad, 2013[14]). No caso dos adolescentes de 15 a 17 anos, o Brasil tem avançado em relação ao número de matrículas no ensino médio: de 5,4 milhões, em 1995, chegamos a 7,8 milhões de estudantes matriculados, em 2014, em escolas públicas, segundo o Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep[15]).
  • O número de meninos e meninas com deficiência que frequentam escolas regulares saltou de 30 mil em 2000 para 700 mil em 2014 (Censo Escolar[16]).
  • De 1990 a 2013, passou de 5 mil para 10,5 mil casos ao ano (Datasus, 2013[17]), um aumento de 110%. Isso significa que, em 2013, a cada dia, 28 crianças e adolescentes eram assassinados.
  • Apenas em 2013, mais de 10 mil adolescentes foram assassinados[18]. Além disso, na maior parte dos casos, não se conhecem os autores desses crimes, porque falta investigação, o que gera um ciclo de impunidade que alimenta uma onda crescente de violência.

 

Conflito com a lei e a redução da maioridade penal[19]

  • Em 2013, dos 10,6 milhões de jovens de 15 a 17 anos, mais de 1 milhão o não estudavam e nem trabalhavam; 584,2 mil só trabalhavam e não estudavam; e, aproximadamente, 1,8 milhão conciliavam as atividades de estudo e trabalho.
  • Entre os jovens que não estudam, não trabalham e não procuraram emprego na semana de referência da pesquisa – observam- se as características típicas de exclusão social do País: a maior parte é da raça negra (64,87%); 58% são mulheres e a imensa maioria (83,5%) é pobre e vive em famílias com renda per capta inferior a um salário mínimo.
  • Os adolescentes que só trabalham também são, na maior parte, negros (61,46%) e pobres (63,68%). O perfil de exclusão também se repete entre os adolescentes que necessitam conciliar trabalho e estudo; esses são, na maioria, do sexo masculino (60,75%), negros (59,8%) e pobres (63,03%).
  • De acordo com o levantamento realizado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (2013[20]), dos adolescentes em conflito com a lei que cumpriam medida socioeducativa de privação de liberdade, 95% eram do sexo masculino e cerca de 60% tinham idade entre 16 e 18 anos.

 

 PARCEIROS: 

  • Andi – Comunicação e Direitos.
  • Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
  • Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

 

HASHTAGS:

#‎25anosdoECA

#‎ReduçãoNãoÉSolução

#‎ECA25anos

 

O QUE LEVAMOS: 

“É necessário conceber uma política nacional pelos direitos da criança e do adolescente que possa reunir todas as políticas setorizadas e integrá-las, sob a ótica dos direitos humanos”, Carlos Nicodemos, vice-presidente do Conanda, à época.

“O ECA criou bases sólidas para que o País avançasse na garantia de direitos à saúde, à educação e à proteção contra a violência para crianças e adolescentes brasileiros”, Gary Stahl, representante do Unicef no Brasil.

“Temos uma lei muito avançada sobre o sistema socioeducativo, bastante recente ainda, de 2012, que precisa ser implementada para que consigamos superar as ameaças de retrocesso que estamos sofrendo, diariamente, no Congresso”, Rodrigo Torres, secretário nacional substituto de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente.

“O desconhecimento do ECA é um problema que exige ações de formação de gestores e professores. A pesquisa também revelou que são os conselhos tutelares que mais divulgam o ECA”, Cláudia Dutra, diretora de Políticas de Educação em Direitos Humanos e Cidadania do MEC.

“Esperar que o Estatuto da Criança e do Adolescente vá resolver todas as questões da desigualdade no Brasil também é uma ilusão. Nós falávamos muito da questão da incompletude institucional, quer dizer, nenhuma instituição dá conta”, Vicente Faleiros, professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e professor titular da UCB.

 

Poesias declamadas

A canção do colégio

Ezequiel Luiz Faria de Sena, 13 anos, membro do G38 do Conanda e integrante do Movimento Cultural Super Nova

Eu nunca vi o sol nascer quadrado

Mas eu o vejo assim seis horas por dia:

Confinado entre quatro paredes concretas, maciças.

 

À frente, eu vejo guerras,

Vejo retas abcissas,

Vejo um mapa visiográfico

E doenças mortais.

 

Vejo orações e mais orações,

Vejo elogios e reclamações,

Vejo a verdade, e vejo ilusões

Vejo liberdade, vejo condições.

 

São três rounds, três sinais

No primeiro, nocaute

No segundo, jamais.

 

Está tudo perfeito e seguro até

Um barulho surdo ensurdecer nossos ouvidos surdos

E desfazer a paz silenciosa feita do barulho incessante no ar.

 

Tocam minhas costas, como a me empurrar:

Acabou a ilusão, é hora de entrar

Voltar a minha cela azul e a meus companheiros de prisão

Um carcereiro tenta me empurrar informação

E é uma tortura!

Querem me forçar

A pesquisar

A criar

A estudar.

 

Quero produzir teatro,

Tenho que fazer trabalho;

Quero compor melodia,

Mas só saio ao meio-dia;

Quero de skate andar,

Tenho dever pra terminar.

 

— Queria explodir esse lugar!

 

 

A eugenia na atualidade

Aíla Oliveira, 17 anos, militante do Movimento Enegrecer, Salvador (BA)

 

Senhores de engenho, racismo científico

O escorrer do sangue negro é um fato contínuo

Forjamento de Estado homogeneizado

Exclusão e reconhecimento negado

Alijamento indigno.

 

Estou à margem, mas não sou marginal

Não, todo preto não é igual

O florescer da vida

O ascender sobre a lida

O nosso povo luta contra o que é tido como normal.

 

As jovens pretas falecem na clandestinidade

O desfecho do aborto na periferia é a mortandade

Os regimentos não condizem com a realidade.

 

As faxinas das raças recebem seus avais

Sem problemas

Matam um, dois, três, que matemos mais.

 

Braço armado que desarma passos

Genocídio que desestrutura laços

O açoite, pra minha gente, tem força de aço.

 

Dandara chora ao seguir os rastros

De sangue, de gangue,

De bangue, de mangue,

De dor.

 

Levanta negritude!

Toma tudo que o racismo nos roubou.

 

PRODUÇÕES:

Relatório Avaliativo: ECA 25 anos com balanço dos avanços, desafios e recomendações da Roda de Diálogo 25 anos do ECA, além da linha do tempo ECA 25 anos.

 

[1] Disponível em: http://bit.ly/2crEZfI. Acesso em 12 set.2016.

[2] Disponível em: http://bit.ly/2aZKRMX. Acesso em: 05 ago.2016.

[3] No Brasil, o trabalho é proibido para menores de 14 anos, e, desta idade até os 15 anos, só é permitido na condição de aprendiz. Entre os 16 e 17 anos, o trabalho é liberado, desde que não comprometa a atividade escolar e que não ocorra em condições insalubres, nem com jornada noturna.

[4] Disponível em: http://bit.ly/2cApvaL. Acesso em: 12 set.2016.

[5] Estimativa feita pelo Unicef- Brasil, baseada em dados do Datasus, 2013..

[6] Ibidem.

[7] Global Burden of Armed Violence, 2008. Disponível em: http://bit.ly/2cV9BXE. Acesso em: 12 set.2016.

[8] Homicídios na Adolescência no Brasil, 2015. Disponível em: http://uni.cf/1SjEpuT. Acesso em: 12 set.2016.

[9] Hidden in Plain Sight, Unicef, 2014. Disponível em: http://uni.cf/1Cut8CO. . Acesso em: 12 set.2016.

[10] Disponível em: http://bit.ly/2cEJnXx.  Acesso em 26 ago. 2016

[11] Disponível em: http://uni.cf/1Mob2c9. Acesso em: 12 set.2016.

[12] Disponível em: http://uni.cf/1SjEpuT. Acesso em: 12 set.2016.

[13] Ibidem.

[14] Ibidem.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Disponível em: http://uni.cf/1SjEpuT. Acesso em: 12 set.2016.

[18] Disponível em: http://bit.ly/2cArpbl. Acesso em: 12 set.2016.

[19] Dados disponíveis em: http://bit.ly/2cgV9uq. Acesso em 26 ago. 2016

[20] Disponível em: http://bit.ly/2cgWDFd. Acesso em: 12 set.2016.