Brasília (DF), 28 e 29 de outubro de 2015

TEXTO DINAMIZADOR

Por Bia Barbosa[1]

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Em março de 2006, a Procuradoria da República no Distrito Federal moveu uma ação civil pública contra os responsáveis pelo programa Barra Pesada, que então era exibido de segunda a sexta-feira à tarde, na TV Brasília, emissora local. O objetivo era proteger os direitos dos telespectadores de cenas “explícitas e detalhadas” de violência, dentre as quais, a exposição de cadáveres, cena recorrente nos chamados programas “policialescos”.

O Barra Pesada, assim como tantos outros deste tipo, que se multiplicaram pelo País – alcançando todos os estados e praticamente todas as redes de TV –, era baseado na apresentação de ocorrências policiais da região, exibindo a prisão de suspeitos em flagrante e mostrando cenas de crimes cruéis. Um monitoramento feito pelo Ministério da Justiça ao longo de um mês de 2006, apontou a exibição de cadáveres de adultos, vítimas de crimes: três meninas supostamente assassinadas por ex-namorados e uma criança abandonada numa lixeira, cujo corpo teria sido deformado por um caminhão de lixo.

Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o programa também fazia uso de linguagem depreciativa e ofensiva e expunha pessoas em situações degradantes, que afrontavam direitos fundamentais e violavam a dignidade humana, ora dos suspeitos, indiciados ou detidos, ora dos telespectadores em geral, submetidos a tais imagens.

Em 16 de dezembro de 2005, após narrar a prisão de um assaltante em Taguatinga, na qual o acusado foi inquerido de costas, o apresentador do Barra Pesada, Geraldo Naves, teceu os seguintes comentários:

[…] tem que mostrar a cara desse canalha. Esse é um canalha. Tem que mostrar a cara dele pra mim (sic) ver. Mostrou a foto. Isso é um covarde. Um viciado, maconheiro! […] Sabe o que eu gosto? Eu gosto quando a polícia pega um palhaço – palhaço não; palhaço dá alegria – um paspalho como esse, entendeu. E coloca a cara […] tem que pegar e virar a cara, pra mostrar pra população. […] esse aí é um maconheiro, entendeu. Ele anda armado, assaltando, precisa de dinheiro, é um incompetente, asno, asno, entendeu, asno. Inconsequente! Nem bobo não é. É um asno, uma anta ambulante. […] Energúmeno!

O MPF foi contundente ao afirmar, no texto da ação, que diversas imagens transmitidas pelo canal não poderiam sequer ter sido veiculadas. Já o governo federal, na época representado pelo Ministério das Comunicações, também foi citado por sua omissão na fiscalização do serviço de radiodifusão, permitindo que a emissora violasse, de forma permanente, direitos previstos na Constituição, no Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O MPF destacou que, mesmo que a legislação brasileira, baseada na premissa da liberdade de informação jornalística, autorize a divulgação de notícias sobre ocorrências criminosas, com a emissão de opiniões a respeito dos fatos, jamais a manifestação do pensamento poderia ser incondicional, a ponto de violar a dignidade humana, a honra e a imagem das pessoas, sobretudo com intuito puramente sensacionalista. Dessa forma, a ação, além de buscar garantir o direito do telespectador, também tinha o objetivo de manter a integridade dos acusados, assegurando o direito de presos e detidos de não prestar declarações contra a sua vontade, de não serem ofendidos, filmados em situações vexatórias e humilhantes, de não serem expostos à execração pública e de não serem pré-julgados e condenados por quem não tenha essa atribuição e competência.

Pode parecer algo muito distante da nossa realidade televisiva, mas é assim que países de democracia consolidada, com órgãos reguladores dos meios de comunicação, agem. Estamos falando de nações como França, Inglaterra, Portugal e Alemanha. Países que entenderam que, sem uma mídia que promova e respeite os direitos humanos, a barbárie do mundo real, reproduzida sem críticas na televisão, só vai se expandir. Ou será que ainda há dúvidas de que o Brasil chegou ao índice de um linchamento por dia ou a 87% da população apoiando a redução da maioridade penal sem a contribuição essa espécie de programa? Pensa assim quem não assiste televisão aberta e desconhece o quanto esse tipo de programação domina a grade das emissoras, ou quem prefere acreditar que o conservadorismo crescente no País não passa por aquilo que se consome cotidianamente na TV.

Pesquisa[2] realizada pela Andi – Comunicação e Direitos, em parceria com o Intervozes, Artigo 19 e o Ministério Público Federal, identificou os principais tipos de violação de direitos praticados pelos policialescos: desrespeito à presunção de inocência; incitação ao crime, à violência, à desobediência às leis ou às decisões judiciárias; exposição indevida de pessoas e famílias; discurso de ódio e preconceito; identificação de adolescentes em conflito com a lei; violação do direito ao silêncio; tortura psicológica e tratamento desumano ou degradante. A continuação do estudo[3] revelou, num período de apenas um mês de monitoramento de 28 programas, em dez capitais estaduais, o assustador número de 4.500 violações de direitos e mais de 17 mil infrações a leis brasileiras e multilaterais e normas autorregulatórias do setor.

Isso significa que não estamos falando de episódios isolados, que geram algum tipo de comoção nacional, como quando a repórter Mirella Cunha, da TV Bandeirantes da Bahia, em 2012, humilhou um suspeito de estupro por ele desconhecer o tipo de exame a ser feito no corpo da vítima. Nem quando a TV Cidade, retransmissora da Record no Ceará, exibiu, por cerca de 20 minutos, em 2014, cenas de uma menina sendo estuprada. Nem, ainda, quando, em 2015, os dois líderes de audiência do gênero – Brasil Urgente, do apresentador José Luiz Datena (Bandeirantes), e Cidade Alerta, do apresentador Marcelo Rezende (Record) – transmitiram uma perseguição policial, ao vivo, que terminou com um policial militar (PM) atirando quatro vezes à queima-roupa em dois suspeitos. Trata-se de uma postura editorial cotidiana, que não tem limites entre canais ou redes de televisão, regiões do País ou horário na grade.

Por horas a fio, ao vivo, assistimos a um desfile de cadáveres, agressões, suspeitos escrachados em delegacias, vítimas expostas e, invariavelmente, discursos contrários aos direitos humanos e em defesa da violência policial, dos justiçamentos e, claro, da redução da maioridade penal. Vale tudo, a qualquer momento e em qualquer lugar (mesmo com as crianças na sala), em um modelo de negócios que já se tornou para lá de lucrativo para as empresas de comunicação.

Já há mais de dez anos o MPF atua para tentar frear tais violações. Enquanto isso, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, responsável por regular a radiodifusão no que diz respeito ao conteúdo veiculado, alega que tem muito pouco a fazer diante de tamanha barbárie. Afirma, ainda, que o Brasil precisaria de normas específicas para punir as emissoras.

Para se ter uma ideia, a maior multa já aplicada a um programa policialesco foi de pouco mais de 23 mil reais – justamente para a TV Cidade, de Fortaleza, que já tinha antecedentes infracionais e, por isso, recebeu um acréscimo em sua sanção. Atualmente, as multas que podem ser aplicadas em casos como este têm como teto o valor de 89 mil reais, algo que está longe de ser dissuasivo para os canais, já que 30 segundos de inserção publicitária podem gerar R$ 15 mil para uma emissora. Assim, menos de 3 minutos de anúncio são suficientes para pagar o valor máximo de multa que qualquer programa pode receber. Na prática, a sanção acaba favorecendo a perpetuação das infrações. Se compararmos com outros países, veremos a fragilidade da nossa política pública. Na França, multas por infrações, como violações de direitos humanos, podem chegar a 3% da renda de uma operadora, indo a 5% em casos de reincidência. Em 1992, o órgão regulador francês (o Conselho Superior do Audiovisual) chegou a multar a TF1, principal TV privada francesa, em cerca de 4,5 milhões de euros por não respeitar as cotas de conteúdo nacional previstas às emissoras. A sanção marcou a história do canal e provocou uma reestruturação de toda a emissora para que esse tipo de problema não se repetisse, funcionando como uma medida pedagógica.

Na Inglaterra, as multas têm teto de 250 mil libras ou 5% da receita do canal (o que for maior). A diretriz geral do Ofcom, o órgão regulador britânico, é a de que, considerada a seriedade da infração, o valor de qualquer multa deve ser proporcional e “suficiente para garantir que a mesma funcionará como um incentivo eficiente ao cumprimento das regras”.

Aqui, ao contrário de França e Reino Unido, além do valor das penalidades ser insuficiente para levar as emissoras a deixar de violar direitos em busca de audiência, há uma prática do Ministério de diminuir a punição prevista. São inúmeros os casos em que a avaliação inicial de uma sanção apontava para a aplicação de multas ao canal; posteriormente, a emissora terminou sendo apenas advertida.

Outro complicador é que, apesar de as sanções serem gradativas, elas não podem ser consideradas cumulativas em casos de reincidência. Assim, mesmo que uma emissora tenha como prática sistemática a difusão de conteúdos que violam os direitos humanos, ela nunca chegará a perder sua licença por tal motivo. O tempo levado para a responsabilização das emissoras também favorece a sensação de impunidade. Há casos que demoram mais de dois anos para serem concluídos. Por fim, o governo federal não realiza um acompanhamento sistemático do conteúdo veiculado pelo conjunto das emissoras, trabalhando apenas com denúncias recebidas e casos que ganham repercussão nacional.

Dentro desse quadro de omissão dos órgãos públicos responsáveis diretamente por fiscalizar os meios de comunicação e da lentidão da Justiça para se pronunciar sobre ações formalizadas, não resta alternativa a não ser uma ampla mobilização social para mudar a realidade que aí está. Já passou da hora de os setores efetivamente democráticos da sociedade repudiarem com seriedade aquilo que, todos os dias, invade nossa casas e nos expõe ao que há de mais bárbaro na programação da televisão brasileira.

Para isso, o Intervozes e a Andi deram o pontapé na construção de uma articulação que terá como foco o combate às violações de direitos humanos nos programas policialescos. A iniciativa pretende reunir organizações e movimentos populares de diferentes campos de atuação e, por meio de mobilizações nas redes e de uma plataforma digital para o recebimento de denúncias, fomentar o debate e a reflexão sobre o tema no País – além, claro, de cobrar das autoridades a responsabilização das emissoras pelas violações praticadas. A articulação também deve pautar essa discussão no processo eleitoral de 2016, já que diversos apresentadores dos policialescos disputarão vagas em Câmaras de Vereadores e Prefeituras em todo o País, mostrando que o trampolim político da barbárie televisiva poderá trazer consequências muito mais sérias para a luta em prol dos direitos humanos no Brasil.

PÚBLICO PARTICIPANTE:

60 pessoas, entre jovens e adultos comunicadoras/es. Os participantes integram coletivos e iniciativas de comunicação de diversos lugares do Brasil, que produzem conteúdo para mídias impressas, digitais e de radiodifusão — comunitários e alternativos — e fazem parte de movimentos culturais que debatem a temática. Participaram também oito adolescentes que fazem parte do G38 do Conanda.

TEMÁTICAS:

  • Redução da maioridade penal
  • Mobilização social
  • 25 anos do ECA
  • Genocídio da juventude negra
  • Autos de resistência
  • Desmilitarização da polícia
  • Mídia, direito à comunicação e democratização dos meios de comunicação no Brasil.

 

OBJETIVOS:

  • Realizar um evento de articulação, mobilização e formação de comunicadoras e comunicadores em torno da pauta da redução da maioridade penal e temas correlatos
  • Mobilizar coletivos de comunicação alternativa, formadores de opinião e midialivristas de todo o País, para o enfrentamento das violações de direitos de crianças e adolescentes e resistência à aprovação das PECs (redução da maioridade penal, aumento do tempo de internação, redução de idade trabalho do infantil).
  • Promover a discussão sobre a violação dos direitos de crianças e adolescentes, principalmente sobre a proposta de redução da maioridade penal no Brasil.
  • Debater e construir estratégias de comunicação para o enfrentamento das violações de direitos humanos de meninas e meninos.

 

COMO FOI:

Este encontro reuniu jornalistas, midialivristas e comunicadores populares que atuam em diferentes espaços, bairros e regiões do País. Em comum, o grupo possui a compreensão do papel estratégico dos meios de comunicação no fortalecimento dos direitos humanos e no enfrentamento às suas violações. Foi nesse sentido que os 60 participantes debateram, em painéis e rodas de diálogo, os temas A construção do ECA e a luta dos movimentos sociais contra a redução da maioridade penal e O papel e a abordagem da mídia em relação ao ECA e ao debate sobre a redução.

Análise de mídia

O Programa de monitoramento Violações de direitos na mídia brasileira, estudo elaborado pela Andi – Comunicação e Direitos, em parceria com o Intervozes, o Ministério Público Federal e a Artigo 19, observou nove programas de rádio e 19 de televisão, veiculados em dez cidades brasileiras de cinco regiões (Belém, Belo Horizonte, Brasília, Campo Grande, Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo). O monitoramento teve como ferramentas a legislação brasileira, a legislação multilateral e referências de autorregulação.

Entre os dados apurados, estão:

  • Em apenas 30 dias, narrativas de rádio e TV promoveram 4.500 violações de direitos.
  • Infração a, pelo menos, 12 leis brasileiras (dentre elas, as que integram a Constituição Federal, o Código Penal e o Estatuto da Igualdade Racial).
  • Infração a, pelo menos, sete instrumentos multilaterais (dentre eles, Convenção sobre os Direitos da Criança e a Declaração Universal dos Direitos Humanos).
  • Desrespeito a, pelo menos, três dispositivos de autorregulação, como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros.
  • Nove tipos de violações de direitos, como desrespeito à presunção de inocência, tortura psicológica, incitação ao crime e identificação de adolescentes em conflito com a lei.

A análise mostra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi violado em 1.802 narrativas policiais. “Com esse mapeamento, entendemos porque 90% da população brasileira é a favor da redução da maioridade. Não podemos ser ingênuos e acreditar que, apenas com nossa produção contra hegemônica, conseguiremos enfrentar isso”, afirmou a pesquisadora Suzana Varjão.

PARCEIROS:

  • Andi – Comunicação e Direitos
  • Centro Popular de Formação da Juventude – Vida e Juventude
  • Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação
  • Mídia Ninja

 

PRODUÇÕES:

Caderno materiais de subsídios – Reduzir a maioridade penal resolve o problema de quem?

 

O QUE LEVAMOS:

Luciana Kellen (Jornalista): “Acompanhamos a pauta da redução da maioridade penal por meio das nossas atividades. Muitos de nós atuam nas redes sociais, em contato com a imprensa, atuamos em instituições responsáveis pelas medidas socioeducativas, fazemos cobertura de eventos em defesa do ECA e pela não redução da idade penal.”

Silas Moreira (G38): “Existem grupos que estão usando a cultura para que adolescentes e crianças conheçam o ECA e discutam a pauta da redução da maioridade penal. Eles usam a arte de forma politizada, mostrando o que ocorre se os direitos forem violados. Por meio do hip-hop, da dança afro, por exemplo, eles trabalham este tema. Nós vemos que, com estas ações, há mudança na mentalidade das crianças e adolescentes e faz com que o conhecimento avance pelo mundo, pois, às vezes, o que falta é conhecimento. Depois que os adolescentes sabem as consequências da redução da maioridade penal, eles mesmos se colocam contra a proposta.“

[1] Bia Barbosa é jornalista, especialista em Direitos Humanos pela USP e mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas. Integra a coordenação do Intervozes, a Comissão Nacional de Ética dos Jornalistas e é secretária-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).

[2] Disponível em: http://bit.ly/2b0rdSc. Acesso em: 05 ago.2016.

[3] Disponível em http://bit.ly/2aoUTrn. Acesso em 05 ago.2016.