Introdução

“O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que assim encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue. Se é dizendo a palavra com que, ‘pronunciando’ o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco torna-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes.” Paulo Freire[1]

O Projeto Proteção Integral dos Direitos de Criança e do Adolescente foi, antes de tudo, um intenso compartilhamento de sentidos. A dimensão estruturante de mobilização social permeou todas as ações, como atos de convocar vontades e de comunicar[2], na busca de um propósito comum, entendendo que participar da mobilização é uma escolha — e, por isso mesmo, se diz convocar —, já que a participação é também um ato de liberdade.

Aquilo que dá sentido a um processo de mobilização é o que Toro e Werneck chamam de horizonte ético. Para a dupla de autores, uma das formas pelas quais um país explicita seu horizonte ético, seu projeto de nação, é por meio de sua Constituição. O artigo 227 de nossa Constituição Federal[3] (1988), por exemplo, nos oferece um elemento fundamental como horizonte ético:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Temos hoje, espalhados pelo País, órgãos públicos e organizações da sociedade civil em grande quantidade, ligados à luta pelos direitos humanos das crianças e adolescentes. Extensa gama de movimentos foi se constituindo como forma de autodefesa do movimento popular, dos segmentos marginalizadas, dos setores sociais mais fragilizados e dos especialmente discriminados. Foi se difundindo, ao mesmo tempo, um sentimento de necessidade de defesa dos direitos humanos e de organização dos setores mais violentamente afetados.

O que orientou este Projeto foi a efetividade da luta pelos direitos humanos das crianças e dos adolescentes. Foi um caminho tortuoso, por seguir na contramão de mecanismos de reprodução social enraizados nas discriminações, na falta de consciência social sobre os direitos de todos, nas violentas tentativas de resolução dos conflitos particulares, dentre outras situações que vêm produzindo formas de comportamento e de representação social que se chocam com o reconhecimento universal dos direitos humanos.

A fim, então, de contribuir para a proteção integral de crianças e adolescentes frente a propostas legislativas e de políticas públicas que poderiam contrariar seus direitos no Brasil, em julho de 2015 foi estabelecida a parceria, via Carta acordo, entre a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso-Brasil) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com realização do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e da Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Com caráter de articulação e mobilização social, ele se concentrou no plano educacional, priorizando a rede de proteção dos direitos das crianças e dos adolescentes, gestores, funcionários públicos e organizações sociais. Orientadas pelo referencial teórico-metodológico de Paulo Freire, por meio de intervenções socioeducativas de articulação, mobilização e formação de adultos, jovens, adolescentes e crianças — para, por e com eles —, as ações foram distribuídas em três eixos: desenvolvimento de estudos e pesquisas; formação para direitos e difusão de conhecimento; e mobilização, sensibilização e articulação social.

Em um ano, o Projeto aconteceu por meio de reuniões, rodas de diálogo, encontro, seminário, pesquisas, ações de rua, produção de materiais e desenvolvimento de metodologias específicas de participação de crianças e adolescentes, com o propósito de apontar avanços, desafios e perspectivas para a efetivação de políticas públicas desses segmentos, ainda que num cenário de retrocessos e ameaças. Emergiram, ao longo do processo, elementos fundamentais para aprofundar métodos de intervenção nos cenários político, econômico e social, necessários para garantir os direitos de crianças e adolescentes.

O acúmulo da construção dessa caminhada feita pelos diversos atores envolvidos, com destaque para a participação de grupos muitas vezes invisibilizados na agenda nacional da criança e do adolescente, se corporificou nas estratégias que passaremos a descrever.

 

Mobilização, sensibilização e articulação social

  • Articulação e organização de ação com três Conselhos Nacionais: da Criança e do Adolescente (Conanda), da Juventude (Conjuve) e de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR).
  • Articulação e organização de ação com movimentos e entidades.
  • Diversidade de atividades de participação do Conanda (círculos de diálogos, oficinas lúdicas, sarau, vigília, visitas a parlamentares, apoio à festival de música e participação de marcha, mostra de cinema, customização de bolsas e camisas e confecção de plaquinhas para adolescentes delegados/as de atividades culturais).
  • Viabilização de momento de compartilhamento de informações, demandas e contexto de atuação dos adolescentes do G38[4] nos Estados.
  • Viabilização de momento de reflexão sobre o papel do G38 no Conanda.
  • Viabilização de espaço de preparação de grupo de adolescentes do Conanda para a X Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.
  • Cobertura educomunicativa feita por adolescentes.
  • Estratégias específicas nas redes sociais.
  • Envolvimento de comunicadoras/es de Pontos de Mídia Livre.

 

Metodologia, estudos e pesquisa

  • Desenvolvimento de metodologia (referencial téorico-metodológico da educação popular).
  • Desenvolvimento, lançamento e apresentação de pesquisas dos parceiros com diversas metodologias.
  • Facilitação do processo de construção de metodologias para adultos, adolescentes e crianças.
  • Oficina preparatória e sistematização das propostas da X CNDCA (etapas estaduais e nacional).
  • Apresentação de dados específicos sobre violência contra crianças, adolescentes e jovens.

 

Comunicação

  • Produção de matérias jornalísticas (coberturas).
  • Produção de materiais de subsídios e relatório-síntese.
  • Desenvolvimento de Campanha audiovisual 1 Minuto pela Infância.
  • Desenvolvimento de identidade visual.
  • Transmissões ao vivo.
  • Atendimento por meio de Assessoria de Imprensa.
  • Registros audiovisuais e fotográficos.

 

A execução do Projeto alcançou um patamar de parceria absoluta e de construção coletiva, aprimorando a qualidade de seus resultados, a harmonia e o comprometimento, na busca pelas soluções de problemas, proporcionando um ambiente colaborativo de ação. Como legado, tornou-se premente o registro dos resultados alcançados, um trabalho de memória das ações executadas. Assim, esta publicação apresenta as atividades levadas a cabo no âmbito do Projeto Proteção Integral dos Direitos da Criança e do Adolescente, com o propósito de compilar aprendizados, metodologias e resultados, que acreditamos ser fundamentais para o fortalecimento da luta pelos direitos humanos de crianças e adolescentes.

Boa leitura!

[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

[2] TORO, J. B.; WERNECK, N. M. D. Mobilização social: um modo de construir a democracia e a participação. Brasília: Unicef, 1996. Disponível em: http://bit.ly/1W31nMQ. Acesso em 06 ago.2016.

[3] Disponível em: http://bit.ly/1dFiRrW. Acesso em: 06 ago.2016.

[4] Grupo de adolescentes que integram a comissão do Conanda, responsável por organizador a Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. É formado por 38 jovens representantes das 27 unidades da federação e de 11 movimentos sociais. Disponível em: http://bit.ly/1QMJCvG. Acesso em 06 ago.2016.

 

PROTEÇÃO INTEGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Por Aparecida Rodrigues[1]

O princípio da proteção integral surgiu na década de 1980, após a instituição de uma Comissão de Direitos Humanos da ONU, substi­tuindo o paradigma da situação irregular e elevando as crianças e adolescentes a sujeitos de direitos. Com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, apesar de não ser cronologi­camente o primeiro nem o único documento a versar sobre esses direitos, eliminou-se o instituto jurídico do menor, modificando completamente a forma que crianças e adolescentes deveriam ser tratados. Isso consolidou a Doutrina da Proteção Integral, com base nas seguintes mudanças:

Sujeitos de direitos

A concepção de crianças e adolescentes como “objetos de direitos” foi reformulada: crianças e adolescentes passaram a configurar como “sujeitos de direitos”. Assim, a família, a sociedade e o Estado, que antes eram titulares desses direitos, passaram a ter o dever de assegurá-los e garanti-los diante de qualquer ameaça ou violação.

O estabelecimento da Proteção Integral significou, portanto, uma mudança de paradigma. Modificou a concepção na qual se encontravam enquadradas, no binômio necessidade-delinquência, para uma situação de protagonismo, de detentores de direitos, independentemente de estarem ou não em uma situação de risco.

De certa forma, pretendeu-se “consertar” uma deficiente atuação ao longo dos anos. Como toda política afirmativa, a Proteção Integral aparenta ser desigual, pois atribui às crianças e aos adolescentes tratamentos diferenciados justamente por serem desiguais em relação aos adultos. Isso se deve à condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. Seus direitos fundamentais são, portanto, classificados como absolutos, enquanto que os direitos fundamentais dos adultos são relativos.

Direitos Humanos

O fato de se encontrar em uma fase especial da vida, não os exclui do rol dos direitos humanos, cuja definição se explica pela natureza do ser humano, que possui direitos intrínsecos ao mínimo de dignidade humana.

Os direitos de pessoas em determinadas fases da vida (crianças, adolescentes e idosos, por exemplo), por razões de gênero ou por deficiência, tendem a ser equivocadamente retirados da doutrina da proteção dos direitos fundamentais. Direitos humanos são aqueles inerentes à nossa natureza. A extensão da aplicabilidade desses direitos é universal, ou seja, todo ser humano deve gozar dos mesmos direitos, uma vez que são inerentes à pessoa humana, independentemente da idade, raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros” (Artigo 1 º da Declaração Universal dos Direitos Humanos).

O sistema homogêneo de proteção dos direitos humanos é aquele destinado a proteger a todos os seres humanos. As crianças e adolescentes estão inseridos em um grupo especial, abarcado, portanto, pelo sistema homogêneo e heterogêneo de proteção dos direitos humanos. Vários instrumentos internacionais reconheceram os direitos humanos homogêneos e mencionaram a importância de um sistema heterogêneo de proteção dos direitos humanos da criança e do adolescente, como, por exemplo, a Declaração Universal, de 1948, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, dentre outros. Entretanto, o reconhecimento dos direitos da criança foi efetivamente consolidado com a Declaração dos Direitos da Criança[2], em 1959.

O sistema heterogêneo é composto de normas que se aplicam a um grupo específico de pessoas, normas essas que beneficiam alguns e não todos. Por isso, deve ser observada a extensão desses direitos, de maneira a não afrontar o princípio da igualdade. No caso de crianças e adolescentes, o que justifica esse tratamento especial é a condição de pessoa em desenvolvimento, reconhecida internacionalmente, e sua vulnerabilidade. Para esse segmento, mais de quarenta direitos específicos foram criados.

Universalidade

Todas as crianças e adolescentes, independentemente de suas condições financeiras, raça, religião, nacionalidade ou quaisquer especificidades, devem ter seus direitos assegurados, da melhor forma, pelos pais, pela sociedade e pelo Estado. Devem ser sempre colocados à frente de qualquer ato que os envolvam, em prol do melhor interesse dessa população.

Desta forma, coloca-se fim à denominação de crianças “carentes” ou “delinquentes”, uma vez que todas têm direito à proteção. Também significa o fim da “situação irregular” de crianças e adolescentes que eram taxados quando não se enquadravam no critério de “bem-nascidos”.

 Pessoas em desenvolvimento

As crianças e adolescentes são pessoas em uma fase especial da vida, na qual todas as suas potencialidades estão em desenvolvimento. Por essa razão, existe a necessidade de uma proteção especial, a fim de preservar o seu pleno desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.

Como observado anteriormente, em grande parte de seus artigos, a Convenção reconhece a criança como um sujeito em desenvolvimento, que se encontra em um período especial. O que está em jogo é alcançar a possibilidade da plena realização de seu potencial. Isso é descrito, por exemplo, no Artigo 6º, que estabelece que os Estados-partes devem assegurar a sobrevivência e o desenvolvimento das suas crianças. O Artigo 27 reconhece o direito de cada criança a um nível de vida apropriada para seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social, enquanto o Artigo 19 obriga os Estados a tomarem todas as medidas necessárias (legislativas, administrativas, sociais e educacionais) para proteger a criança de todos os tipos de abusos, maus-tratos, exploração e assim por diante.

Crianças e adolescentes são desiguais em comparação aos adultos. Eles ainda não podem exercer plenamente suas potencialidades e sua personalidade não está completamente formada. Ao se falar em direitos da criança e do adolescente, pressupõe-se, portanto, que possuem atributos e conteúdos diversos dos direitos da personalidade dos adultos.

Contudo, é necessária uma tutela especial para equilibrar a desigualdade entre o mundo adulto e o da criança e do adolescente, uma vez que esses últimos estão vulneráveis diante do mundo adulto para concretizar seus direitos. Essa tutela deve atingir uma igualdade material e não apenas formal.

Interesse superior nas crianças e nos adolescentes

Crianças e adolescentes, além de sujeitos de direitos, passaram a ser consideradas pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, o que os afasta da intervenção estatal arbitrária. Estão em processo de formação biopsicossocial e ainda não conseguem prover suas necessidades de subsistência sem comprometer esse desenvolvimento humano, de forma saudável. O atendimento a essa população tem prioridade em todas as ações da esfera estatal, para que se possa proporcionar a eles um desenvolvimento de forma plena.

Pela primazia do melhor interesse da criança e do adolescente, entende-se que qualquer medida que os envolva deve, primeiramente, levar em consideração o que é melhor para eles, independentemente de quaisquer condições em que se encontram. Essa primazia autoriza, inclusive, em determinados casos, deixar de se observar as normas legais para que se atinja esse interesse maior, respaldado nos limites que a própria lei determinar.

De acordo com este princípio, em todas as ações relativas às crianças e aos adolescentes – realizadas por instituições públicas ou privadas, de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas, órgãos legislativos -, devem atender o melhor interesse da criança e do adolescente, como uma consideração primária. Esse princípio deve ser visto necessariamente como a satisfação dos direitos fundamentais das crianças. Assim, nunca se pode deduzir outro tipo de interesse como superior à vigência efetiva de seus direitos.

1) O princípio da Proteção Integral no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal

O fim do Código dos Menores revolucionou o tratamento à criança e ao adolescente. O novo ordenamento regulamentou a proteção e os direitos dessas pessoas, universalizando-os, de acordo com os princípios dos direitos humanos. Isso abrange todas as crianças e adolescentes, sem quaisquer distinções. Assim, eles passaram a ser considerados sujeitos de direitos e, consequentemente, existe hoje a obrigação de prestação de tais direitos. Esse fator representou uma total mudança de postura com relação ao Código de Menores, que apenas tinha previsão normativa para crianças e adolescentes que se encontravam no binômio da necessidade-delinquência. Outra inovação foi a criação de diferentes mecanismos políticos, jurídicos e sociais para o cumprimento desses direitos.

Tal mudança ocorreu devido a inúmeros debates realizados acerca dos direitos humanos na sociedade civil e da necessidade de se criar um Estado democrático de Direito. Resultou na construção da Carta Constitucional de 1988, que reformou o direcionamento da política de atendimento a crianças e adolescentes, tratando-os como sujeitos de direitos e significou uma mudança de paradigma: da situação irregular para a Proteção Integral. O Brasil inseriu no artigo 227 do texto constitucional de 1988, antes mesmo de ser aprovada a Convenção Internacional sobre Direitos da Criança, em 1989, pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, a doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente, retirando do ordenamento a doutrina da situação irregular, vigente até então no Código de Menores.

A mudança de paradigma significou um marco divisório, uma transformação completa na abordagem dos direitos das crianças e dos adolescentes. Modificou totalmente a linha de ação da política nacional de proteção, para se enquadrar na doutrina da Proteção Integral. Para o “novo ideário norteador do sistema”, todas as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, independente de quaisquer condições.

Ao atribuir a condição de sujeitos de direitos (civis, humanos e sociais, conforme Art. 15 do ECA) às crianças a aos adolescentes, atribuição essa decorrente do próprio texto constitucional (art. 227 da Constituição Federal), a ordem jurídica reconhece que esses sujeitos têm as mesmas prerrogativas elencadas no art. 5° da Constituição, que trata dos direitos individuais e coletivos. Isso significa que possuem todos os direitos dos adultos que sejam compatíveis com a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento que ostentam.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 apresentou um rol extenso e moderno de direitos e garantias fundamentais. Determinou à família, à sociedade e ao Estado o dever legal e concorrente de assegurar, com prioridade, os direitos das crianças e dos adolescentes, caracterizando essas pessoas como sujeitos de direitos que necessitam de cuidados especiais para o seu desenvolvimento físico, psicológico e social. Isso somente pode ser viabilizado com a plena garantia e proteção dos direitos à vida, à saúde, à educação, ao lazer, ao espore, à cultura, à profissionalização, à convivência familiar e comunitária.

O Art. 227 da Constituição, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010[3], afirma que:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O dever é solidário e a referência, primeiramente à família, remete ao significado de que é a primeira esfera de atenção que a criança e o adolescente têm. Os direitos assegurados podem ser requisitados, diante do seu não atendimento, por qualquer criança ou adolescente, sem distinção. Sendo portadores de uma condição peculiar de pessoa em desenvolvimento – e, exatamente por isso –, precisam ter garantidos os seus direitos previstos em lei e a sua dignidade. Isso se refere tanto aos direitos que condicionam a sua sobrevivência, quanto aos que proporcionam o seu desenvolvimento pessoal e social, além dos casos em que é imprescindível a sua proteção especial.

Em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente inseriu os princípios estatutários da vulnerabilidade e da condição peculiar da criança e do adolescente; sistematizou a atuação da família, da sociedade e do Estado na aplicação da norma constitucional. Também regulou o princípio da municipalização, criou medidas governamentais aos entes federativos, instrumentos para concretizar a descentralização político-administrativa e definiu a atuação de cada esfera nas políticas públicas, nos programas, projetos e serviços de proteção social e de assistência social. Instituiu, ainda, os conselhos tutelares e os conselhos de direitos da criança e do adolescente, para que a sociedade possa exercer a fiscalização e o controle da gestão das políticas de atendimento, para que ocorra a efetivação dos direitos da criança e do adolescente, protegendo a sua população com as competências previstas no ECA. Dentre essas competências, está a de encaminhar notícia de fato que envolva infrações administrativas e penais sobre ameaça ou lesão dos direitos ao Ministério Público ou à autoridade de judiciária.

O que define o princípio da condição peculiar é o fato de a criança e o adolescente ser configurado como um ser humano em fase de desenvolvimento, de formação física e biológica e em construção de sua personalidade. O critério optado pelo legislador foi o da idade. Considera-se criança até 12 anos incompletos e adolescentes, a partir de 12 anos até 18 anos incompletos. Durante as legislações vigentes anteriormente, nem sempre foi utilizado esse critério. O Código Criminal do Império do Brasil, por exemplo, atribuía responsabilidade penal aos menores de 14 anos e maiores de 9 anos, quando comprovado o seu discernimento.

Não significa dizer que, com base nesses princípios, as crianças e adolescentes desconhecem por inteiro seus direitos e são incapazes de defendê-los e exigirem seu cumprimento plenamente, mesmo não tendo sua formação completa, principalmente as crianças. Cada evolução deve ser reconhecida e respeitada pela família, pela sociedade e pelo Estado. Como consequência, são detentores de todos os direitos aplicáveis aos capazes, juntamente com os direitos especiais inerentes às pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

O Estatuto da Criança e do Adolescente dividiu a atuação do Estado no cumprimento das suas disposições em seus três poderes: Judiciário, Executivo e Legislativo. Cabe a todos zelar pelo cumprimento das normas criadas pelo Poder Legislativo. O sistema de garantias de direitos dividiu a atuação do Estado e da sociedade civil em três eixos: promoção, defesa e controle social. Esse sistema se baseia em um modelo complexo e integrado de ações, decorrente da evolução das demandas sociais e do frequente desrespeito aos direitos da criança e do adolescente.

O Estatuto da Criança e do Adolescente dividiu a atuação do Estado no cumprimento das suas disposições em seus três poderes: Judiciário, Executivo e Legislativo. Cabe a todos zelar pelo cumprimento das normas criadas pelo Poder Legislativo. O sistema de garantias estabelecido pelo ECA compreende, entre outros pontos: as diretrizes para a elaboração da política de atendimento, a definição das medidas de proteção e ações socioeducativas, a delimitação dos papéis do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos advogados, além da tipificação de ilícitos penais e administrativos e a regulamentação de procedimentos relacionados à Justiça da Infância e da Juventude. O atendimento deve ser executado em conformidade com as diretrizes de descentralização político-administrativa, que permite que cada região atenda a sua demanda, conforme for a sua necessidade, com a participação da sociedade no controle das ações e execuções dessas políticas públicas ligadas à proteção de crianças e adolescentes, e do terceiro setor, que são as organizações não governamentais (ONGs), cuja atuação deve ser conjunta com os órgãos do governo, obedecidos os requisitos necessários.

2) Proteção Integral e políticas públicas

O Poder Executivo tem como linha de atuação a execução da Política de Atendimento. Trata-se de um conjunto de princípios e regras, instituições, objetivos e metas para tornar disponível a promoção dos direitos idealizados pelo ordenamento jurídico às crianças e aos adolescentes. Essa política foi dividida em três linhas de ações: a proteção social básica, a política de assistência social e a proteção social especial.

A Proteção Social Básica visa assegurar os direitos universais de todas as crianças e adolescentes, como a educação, a saúde, a alimentação, o lazer, a cultura, o esporte, a convivência familiar e comunitária.

A Política de Assistência Social, como forma de prevenção e de proteção, atua na promoção de programas, ações e projetos voltados para diminuir a segregação social, a desestruturação familiar e os riscos pessoais e morais de uma criança, geralmente causados pela ordem social e econômica.

A Proteção Especial das crianças e dos adolescentes engloba os serviços de acolhimento de indivíduos em situação de risco e demanda uma intervenção abrangente, por não contarem mais com a proteção e o cuidado de suas famílias. Caracteriza-se pelo atendimento de crianças e adolescentes que necessitam de uma família substituta para usufruírem do direito à convivência familiar; ou de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, que de alguma forma entraram em conflito com a lei e estão sujeitos a medidas de caráter pedagógico, não punitivo. De certa forma, nesses casos, o Estado, a sociedade e a família são partes responsáveis pelos atos desses adolescentes, já que, por omissão ou ação – de algum, alguns ou a totalidade desses agentes -, é que esses jovens não conseguiram ser inseridos na sociedade. As garantias processuais, que anteriormente não eram estendidas às crianças e adolescentes, por considerá-los objetos de direitos, foram introduzidas juntamente com um sistema de administração da justiça juvenil, com a articulação dos órgãos da Segurança Pública, Ministério Público, varas da infância e da juventude e entidades de atendimentos.

A prioridade de atendimento significa que toda a ação ou política elaborada pelo Poder Público, em suas três esferas e poderes, devem atender, em primeiro lugar, às necessidades das crianças e dos adolescentes. O artigo 4° do ECA conceituou esse princípio de maneira a vincular o Estado ao seu cumprimento, de acordo com as formas elencadas.

Assim, o Art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente[4] afirma que:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

E, o Parágrafo único[5] trata da garantia de prioridade, que compreende:

  1. a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
  2. b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
  3. c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
  4. d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Nas políticas públicas, independentemente da área de atuação, devem ser privilegiadas aquelas destinadas aos jovens e às crianças. Também é necessário que se tenha previsão, na Lei Orçamentária, de recursos direcionados à proteção social básica, à assistência social e à proteção especial dessa população em cada esfera de governo.

A importância da doutrina da Proteção Integral é poder oferecer à criança e ao adolescente os seus direitos básicos e protegê-los de qualquer ameaça ou violação, sem que sejam supridos em nome do seu bem-estar. É a participação do tripé família/sociedade/Estado, para que crianças e adolescentes tenham iguais oportunidades de alimentação, saúde, educação, lazer, profissionalização, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária. Somente assim estaremos caminhando para uma sociedade mais humana e com menos desigualdades.

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SISTEMA DE GARANTIA DE DIREITOS PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES 

Garantir a primazia do atendimento à criança e ao adolescente pelas políticas públicas sociais, conforme determina a Carta Maior de nosso país, a Constituição Federal de 1988, exige avaliar a efetividade dos serviços prestados a esse público. A partir da criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990, o Brasil passou a pautar-se por uma legislação desafiadora, que impulsiona o poder público e a sociedade civil a encontrar soluções cada vez mais eficientes para assegurar, de fato, os direitos da infância e da adolescência brasileiras.

A Constituição Federal Brasileira assegura uma ampla participação e controle da sociedade no desenvolvimento das políticas públicas, sobretudo com o surgimento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). Inicia-se um processo estritamente ligado às várias lutas e mobilizações de grupos, entidades e organizações realizadas tanto no âmbito mundial quanto no nacional, envolvendo todos os atores sociais, no sentido de se trabalharem em rede, de forma sistemática, integrada e em parceria, em prol dos interesses de crianças e adolescentes.

Intensificou-se, então, a forma de intervenção social em rede, na busca da promoção e na restituição do direito violado. O ECA concebeu um Sistema de Garantia de Direitos (SGD), cujo modelo estabelece uma ampla parceria entre o poder público e a sociedade civil, para elaborar e monitorar a execução de todas as políticas públicas voltadas ao universo da infância e adolescência.

O avanço obtido no processo de construção das políticas públicas no Brasil ainda precisa se aprofundar. Isso se aplica especialmente à execução dessas políticas públicas pelos municípios e à prioridade absoluta em relação às crianças e aos adolescentes.

O SGD é composto, no campo do controle social, e, subsidiariamente, na promoção dos direitos, pelos conselhos nacional, estaduais e municipais dos direitos da criança e do adolescente. Já no campo da defesa dos direitos, o SGD é composto pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelos Centros de Defesa (Cedecas), pela Segurança Pública e pelos conselhos tutelares.

De forma articulada e sincrônica, o SGD estrutura-se em três grandes eixos estratégicos de atuação: defesa, promoção e controle. Essa divisão nos ajuda a entender em quais campos age cada ator envolvido para, desta forma, podemos cobrar de nossos representantes suas responsabilidades, assim como entender as nossas, como cidadãos dentro do sistema.

No eixo da defesa, temos as leis e as instâncias judiciais, que devem garantir a defesa, a fiscalização e as sanções, quando detectado o descumprimento de leis. Instâncias do Judiciário, conjuntamente com organizações da sociedade civil, devem zelar para que a lei seja aplicada de fato. Um dos principais órgãos é o Conselho Tutelar, que está na ponta da abordagem com a sociedade e funciona como um guardião, ao observar e encaminhar, em campo, os casos de violações dos direitos que podem vir a ocorrer com crianças e adolescentes. Outro ator sobre o qual ouvimos muito falar é o promotor do Ministério Público, que age em casos de abusos dos direitos.

O eixo da promoção se baseia no desenvolvimento e na execução da política de atendimento às crianças e aos adolescentes, de forma transversal, intersetorial, articulando todas as políticas públicas e integrando ações. Tem como finalidade a satisfação das necessidades básicas, por meio das políticas públicas, garantindo os direitos das crianças e dos adolescentes pelo cumprimento dos deveres da família, do Estado e da sociedade.

Neste eixo, estão situados: saúde, educação, esportes, cultura, assistência social, inserção no mundo do trabalho, dentre outras áreas de efetivação de políticas públicas e serviços sociais. Nele também estão as políticas de proteção básica e as de proteção especial, como os Programas de Execução das Medidas de Proteção (como o acolhimento institucional) e os programas de execução de medidas socioeducativas, como a liberdade assistida.

No eixo da promoção atuam os executores das políticas públicas, responsáveis pelo atendimento das crianças e dos adolescentes nas políticas de proteção básicas e de proteção especial, como as secretarias de governo de Assistência Social; de Justiça e Cidadania; Direitos Humanos; Saúde; Educação; Esportes; Cultura; Trabalho, dentre outras, que executam programas e serviços na área da infância e juventude. Também participam fundações públicas ou privadas, ONGs e demais entidades da sociedade civil que realizam serviços e programas. As famílias devem ser as promotoras principais dos direitos das crianças e adolescentes, ao lado de instituições, setores e entidades.

Por sua vez, o eixo do controle da efetivação de direitos realiza o monitoramento, a fiscalização das ações públicas de promoção e defesa, por meio de instâncias públicas colegiadas, com paridade entre governo e sociedade civil. São os conselhos de direitos da criança e do adolescente, sejam municipais, estaduais ou nacional e os conselhos setoriais, nas áreas afins, como conselhos de Saúde, Educação, Assistência Social, dentre outros.

Os conselhos contribuem na formulação das políticas públicas, deliberando e vinculando normas técnicas, resoluções, orientações, planos e projetos. Também devem monitorar a execução dos orçamentos, a efetivação e os resultados das políticas públicas. O controle é também exercido por entidades, Ministério Público, Poder Legislativo, Defensorias Públicas, conselhos tutelares, entidades da sociedade civil, cidadãos e pelos fóruns de discussão e controle social.

Assim, a atuação articulada deve garantir o dinamismo do Sistema de Garantia de Direitos e, consequentemente, a proteção integral de todas as crianças e adolescentes, especialmente as que têm seus direitos violados ou ameaçados, sem desconsiderar o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Esse se configura como o grande desafio posto para as instituições que compõem tal sistema.

A rede sugere articulação, conexão, vínculos, ações complementares, relações horizontais entre parceiros, interdependência de serviços, convergências. Ao se pensar na rede de garantia de direitos sob uma perspectiva de Proteção Integral, é essencial considerar que a união de esforços individuais ou institucionais criará um conjunto mais forte do que a mera soma de esforços, levando a uma sinergia. Para isso, os atores devem trocar informações, bem como compartilhar capacidades e recursos. Entretanto, a corresponsabilidade gerada não elimina conflitos (inclusive de poder) e a relação de igualdade não dispensa a utilização de mecanismos de gestão.

Diante de tais fatos, a materialização do Sistema de Garantia de Direitos está pautada na valorização da criança e do adolescente, que ganha reforço por meio da construção do ECA, enquanto dispositivo legal que objetiva garantir a proteção de crianças e adolescentes em todos os contextos nos quais estão inseridos. No entanto, é necessário que se faça uma reflexão crítica acerca da efetivação dos direitos de tais sujeitos, tanto no âmbito nacional, como na esfera local, tendo em vista o atual contexto de minimização e precarização das políticas públicas e retração dos direitos sociais.

Texto dinamizador

Considerando o atual contexto social, político, econômico e cultural, de retração de direitos e lutas sociais, imposto pela política neoliberal impregnada na sociedade brasileira, situações de violação de direitos contra crianças e adolescentes se configuram como uma nova expressão da questão social. Ela deve ser enfrentada por um Sistema de Garantia de Direitos devidamente consolidado, por meio de seus eixos – defesa, promoção e controle -, articulando e mobilizando a rede de atendimento à criança e ao adolescente no enfrentamento de todas as formas de violação de direitos.

Destacamos a importância de ações mais efetivas e contínuas no âmbito das políticas públicas, no tocante às respostas possíveis de serem dadas pela rede de atendimento, assim como o acolhi48

mento psicossocial e jurídico, que se constituem também como alternativas de enfrentamento das violações de direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Essas questões requerem um trabalho desenvolvido em rede, com parcerias e atividades concretas que, ao menos, sensibilizem os diversos setores sociais, na perspectiva de viabilização de direitos.

Os desafios ainda são grandes para que o Sistema de Garantia de Direitos funcione de forma plena. Neste sentido, destacamos alguns pontos que merecem reflexão.

  • Fortalecimento e/ou estruturação adequada dos conselhos tutelares e dos conselhos de direitos.
  • Implantação e/ou estruturação adequada das delegacias especializadas em crianças e adolescentes.
  • Implantação e/ou estruturação adequada das Varas Especializadas da Infância e Juventude, respeitando os critérios de exclusividade, proporcionalidade populacional e da existência de equipes técnicas multidisciplinares.
  • Implantação e/ou estruturação adequada das Defensorias Públicas e das Promotorias da Infância e Juventude, respeitando os critérios de exclusividade, proporcionalidade populacional e da existência de equipes técnicas multidisciplinares.
  • Efetividade do Sistema de Proteção Social, com a existência dos programas e serviços especializados de atendimento e proteção à Infância e Juventude, incluindo o atendimento às famílias; o enfrentamento do abuso e da exploração sexual; a erradicação do trabalho infantil; o atendimento à drogadição; o atendimento às vítimas de maus-tratos e violência; a promoção da convivência familiar e comunitária; as medidas socioeducativas; as oportunidades e a inclusão, por meio de uma rede de proteção consolidada e permanente.
  • Criação de Centros de Referência Especializados em crianças e adolescentes.
  • Criação de uma lei específica sobre os parâmetros, atribuições e funcionamento do Sistema de Garantia de Direitos.
  • Formação permanente e continuada dos integrantes do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente.
  • Respeito aos princípios da intersetorialidade, integração e indivisibilidade dos direitos na formulação e execução das políticas públicas.
  • Garantia da destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas à proteção da infância e da juventude, conforme aponta o Parágrafo Único do artigo 4º do ECA.

 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

_____. Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Disponível em: http://bit.ly/2bbr5LX. Acesso em: 03 de mar.2011.

_____. Declaração Universal dos Direitos das Crianças. Disponível em: http://bit.ly/1lXwrYt. Acesso em: 03 de mar. 2011.

MELO, Cássia Vieira de. Fortalecimento da rede de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. In: FNDCA (Orgs). A incidência da sociedade civil no processo de construção da política nacional da criança e do adolescente. Brasília: Brasil, 1ª ed., 2010, p. 53-57.

GARCIA. Margarida Bosch. Um Sistema de Garantia de Direitos – Fundamentação (A). In: Sistema de Garantia de Direitos: um caminho para a Proteção Integral. Recife, Cendhec, 1999, n. 01-14.

PINHEIRO, Ângela de Alencar Araripe. A criança e o adolescente como sujeitos de direitos: emergência e consolidação de uma representação social no Brasil. In: CASTRO, Lucia Rabello de (Org.). Crianças e jovens na construção da cultura. São Paulo: Nau Editora, 2001, p.47-68.

SILVA, Ana Paula Queiroz; DIAS, Sayonara R. D. M. O Aprender do fazer profissional do Serviço Social na Casa Renascer. In: SILVA, Ana Paula Queiroz et al. Casa Renascer: uma história construída por muitas mãos, mentes e corações – Sistematização dos Serviços de Atendimento. Natal: Casa Renascer, 2009. p. 13-56.

 

25 ANOS DO ECA: AVANÇOS E DESAFIOS

Poderão cortar todas as flores, mas não acabarão jamais com a primavera. (Pablo Neruda)

Um quarto de século se passou desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Trata-se de um jovem adulto que carrega a responsabilidade de proteger o futuro do Brasil. Para além das habituais comemorações, este é um convite à reflexão. Essa reflexão deve ser feita sobre os avanços obtidos neste primeiro quarto de século de vigência e os desafios ainda não superados, assim como a necessária observância das novas diretrizes da política vertida no Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes.

Podemos dizer que, do ponto de vista legal, o ECA provoca a “ruptura” com o paradigma da “situação irregular” do Código de Menores de 1979, que concebia crianças e adolescentes como “objeto” da intervenção judicial.

A criança e o adolescente passaram a se constituir sujeitos de direitos e não mais meros objetos de intervenção social e jurídica por parte da família, da sociedade e do Estado. Quando eles se tornam prioridade absoluta para a sociedade, reconhecemos que, em qualquer etapa do seu desenvolvimento, são seres humanos na mais plena acepção do termo, o que é um valor intrínseco. Não menos importante, reconhecemos também que cada criança e cada adolescente é um portador do futuro de sua família, do seu povo e da humanidade, o chamado valor projetivo das novas gerações. Assim, assegurar todas as condições para o seu desenvolvimento pleno é assegurar esse valor prospectivo.

No processo histórico dos 25 anos foram muitas as conquistas do ponto de vista da participação e do controle social. A criação, nos três entes federativos, dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, com atribuição de formular, deliberar e avaliar as políticas sociais para a infância e adolescência; os fundos da criança e do adolescente, com gestão dos conselhos, os conselhos tutelares, criados para zelar pela efetivação dos direitos; e as conferências dos direitos da criança e do adolescente, realizadas a cada dois anos, para conferir, avaliar e propor ações de implementação do ECA são alguns exemplos.

Outro avanço foi a criação dos Fóruns dos Direitos da Criança e do Adolescente nas três esferas, como espaços de debates, de construção de agendas das políticas sociais e de posicionamento diante das diversas violações cometidas contra crianças e adolescentes. No âmbito das formulações legais, foram criados planos, orientações e sistemas, tais como: Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA); Plano de Erradicação do Trabalho Infantil; Plano de Enfrentamento da Exploração e Violência Sexual; diretrizes para medidas socioeducativas de internação relativas ao ato infracional; Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM); Plano Nacional de Promoção,

Proteção e Defesa dos Direitos de Crianças a Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária; e o próprio Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), instituído pela Lei nº 12.594/12. Tais iniciativas também exemplificam os muitos avanços que tivemos nesse processo de implementação.

Do ponto de vista cultural, os avanços ainda são tímidos. Isso porque a mudança de atitude exige uma profunda revisão de valores. É preciso compreender que não é possível existir o novo sem mudanças nas velhas formas de fazer política e na interação com crianças e adolescentes, sem imposições de adultos. Percebê-los como sujeitos de direitos é fazer valer sua participação; é assegurar o direito de opinar e de construir coletivamente as regras – na família, na escola, nos grupos sociais que frequentam e nas políticas sociais que os atendem. A mudança cultural demanda a construção de várias estratégias educativas.

Por essa razão, no ano de 2007 foi criada a Lei nº 11.525/2007, que institui a obrigatoriedade do conteúdo que trata dos direitos das crianças e dos adolescentes no currículo de ensino fundamental[6]. Sua aprovação permite que as escolas possam repensar seus planos de trabalhos anuais e planos de aulas, com base nos direitos humanos de criança e adolescente. Apreender o conjunto de valores e princípios preconizados pelo ECA requer de nós olhar a realidade sob o foco de outras lentes; não se trata apenas de trocar os óculos, mas de mudar a forma e o conteúdo do olhar.

Neste sentido, é inegável que diversas foram as conquistas ao longo dessas duas décadas e meia. Como resultado, podemos destacar a diminuição dos indicadores da fome, da extrema pobreza e da marginalização; o melhor atendimento às gestantes e parturientes; a redução da mortalidade infantil; e a maior abrangência de oferta do ensino fundamental. Os poderes públicos e a sociedade civil vêm se esforçando para criar um novo olhar para o tema em conselhos municipais dos direitos da criança e do adolescente, conselhos tutelares, secretarias – como assistência social, saúde, educação, cultura e segurança pública -, varas especializadas da infância e da juventude e unidades de internação de adolescentes autores de atos infracionais.

Ao estimular a construção de oportunidades e de redução das desigualdades, o Estatuto da Criança e do Adolescente torna-se mais um instrumento importante de transformação social, embora persistam altos índices de violência, abusos, exploração sexual e mortes de crianças e jovens. Isso mostra que o maior desafio de hoje em relação ao ECA é a sua própria implementação. Temos uma legislação avançada e uma experiência ainda muito precária. O ECA supõe um novo modelo de sociedade. Por isso, colocá-lo em prática é tarefa complexa, que ainda encontra muitas resistências.

O ECA é muito exigente, um projeto para uma nova sociedade. Seria estranho que a velha sociedade, geradora – e, dialeticamente, vítima – de desigualdades sociais e de inúmeros tipos de violência, o aceitasse de imediato. As políticas sociais são intersetoriais e transversais. Mexer com um direito humano, é mexer com todos, dada a sua interdependência e indivisibilidade. Falta maior diálogo e articulação dos integrantes do Sistema de Garantia de Direitos, responsável pela operacionalização e efetivação das políticas públicas para as crianças e os adolescentes, de acordo com a Constituição de 1988.

O ECA precisa ser mais conhecido, mais estudado, inclusive pelos próprios profissionais que trabalham em todas as áreas sociais. A mídia, de modo especial, tem o papel de conhecer e de promover os direitos da criança e do adolescente, pois existe ainda muita rejeição a ele. Ao celebrarmos seus 25 anos, podemos dizer que avançamos muito, temos muito a celebrar, mas a tarefa continua árdua, não só para evitar retrocessos, como para alcançamos o patamar desejado na sua efetiva implementação.

Por fim, o Brasil precisa avançar mais para assegurar um futuro melhor para crianças e adolescentes. Não faltam leis nem políticas públicas, mas a garantia de sua execução. É fundamental saber o que cobrar e de quem.

A sociedade precisa compreender para questionar se o que está previsto em nossas leis está sendo garantido às crianças e aos adolescentes de todas as regiões e classes sociais em nosso país. Há instrumentos para isso e o ECA é nosso grande aliado.

 

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Luciano Mendes de. Artigo 1º. In: CURY, Munir (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 17.

AMARAL e SILVA, Antônio Fernando do. O Estatuto, o novo Direito da Criança e do Adolescente e a Justiça da Infância e da Juventude. Florianópolis: Tribunal de Justiça de Santa Catarina, 1996.

ANDRADE, Vera Regina Pereira. Cidadania: do direito aos direitos humanos. São Paulo: Acadêmica, 1993.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal nº. 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília: MEC, ACS, 2005.

RIZZINI, Irma. A assistência à infância na passagem para o século XX – da repressão à reeducação. Revista Fórum Educacional, n. 2, 1990 e PRIORI, Mary del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.

ZAFARONI, Raul, artigo 206. In: CURY, Munir (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 6 ed. rev. e amp. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 694-696.

[1] Aparecida Rodrigues: Mestranda em Estado, Governo e Políticas Públicas (FLACSO/FPA), Especialista em Gestão Pública e Assistente Social (PUC/SP).

[2] Declaração dos Direitos da Criança. Disponível em: http://bit.ly/1Ughze2. Acesso em: 12 set.2016.

[3] Disponível em: http://bit.ly/2aHAqwD. Acesso em 06 ago.2016.

[4] Disponível em: http://bit.ly/1TYdQOX. Acesso em 06 ago.2016.

[5] Disponível em: http://bit.ly/1TYdQOX. Acesso em 06 ago.2016.

[6] Lei nº 11.525/2007. Disponível em: http://bit.ly/2cEnJm5. Acesso em: 12 set.2016.

 

EXPEDIENTE

Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR

Michel Temer – Presidente da República Federativa do Brasil

Alexandre de Moraes– Ministro de Estado da Justiça e Cidadania

José Levi Mello do Amaral Júnior – Secretário Executivo do Ministério da Justiça e Cidadania

Claudia de Freitas Vidigal – Secretária Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente

Fábio José Garcia Paes – Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente

 

Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais – FLACSO Brasil

Salete Sirlei Camba – Diretora

Ronaldo Moysés – Coordenador Executivo

André Lázaro – Coordenador Acadêmico

Kathia S. Dudyk – Coordenadora de Relações Institucionais

Diane Funchal – Coordenadora Administrativa

 

Projeto Proteção Integral dos Direitos de Crianças e Adolescentes

Salete Sirlei Camba – Coordenadora Geral

Kathia S. Dudyk – Coordenadora Técnica

Thaís Chita – Coordenadora das Ações do Projeto

Diane Funchal – Coordenadora de Gestão

Raquel Lasalvia – Assistente das Ações do Projeto

Lívia Medina – Analista de Mídias Sociais

 

Revisão: Cássia Janeiro

Fotos: Andressa Anholete, Paula Fróes E Michelle Castilho

Projeto gráfico e diagramação: Coarquitetos