Brasília (DF), 8 a 10 de dezembro 2015

TEXTO DINAMIZADOR

 Adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas

Galerias de fotos e de vídeos da “Campanha 1 minuto para a infância” 

O papel desempenhado pelos movimentos sociais organizados no Brasil a partir de meados da década de 1970 foi essencial no sentido da luta pela redemocratização do País, que vivia os efeitos do regime autocrático burguês, instalado em 1964. Um dos setores da sociedade que emergiu naquele contexto, se fazendo ouvir por intermédio de contundentes denúncias e de um sem número de propostas, foi o da militância em prol de crianças e adolescentes.

Tal segmento reivindicava, principalmente, o status de sujeitos de direitos e, consequentemente, mudanças na concepção do atendimento dirigido a essa parcela da população. Inicialmente contempladas na Carta Constitucional de 1988 (art. 227), as demandas daquele setor foram consolidadas em 1990.

Introduziu-se, na agenda da infância e adolescência brasileira, a defesa e a garantia dos direitos humanos. Isso trouxe mudanças de referenciais e paradigmas na política de atendimento ao segmento.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Ao se estabelecer essa norma constitucional, o que se queria era responsabilizar todos os envolvidos na vida das crianças brasileiras, não mais a cada um, de forma individual, como anteriormente; o que se queria, era a proteção integral. A mudança constitucional prosseguiu com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que incorporou à legislação brasileira a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, além de trazer em si a estrutura jurídica da doutrina da proteção integral. Essa linha de pensamento é avessa à ideia de que crianças e adolescentes são objetos passivos de tutela e, ao contrário, assume que são sujeitos de direito, em condição peculiar de desenvolvimento, a quem deve ser garantida, de forma efetiva, a proteção integral, com absoluta prioridade.

Hoje há uma grande discussão a respeito dos adolescentes de até 18 anos incompletos, considerados inimputáveis pelo ECA. Na mídia, é comum haver debates sobre o tema, que sempre gera polêmica. Saraiva (2010, p.31) corrobora o entendimento de ser equívoca a ideia de reduzir a idade penal para diminuir a criminalidade no País:

A opção legislativa brasileira de fixar a adolescência no período compreendido entre a zero hora do dia em que o adolescente completa dezoito anos, se constitui em uma decisão de política criminal. Opção adequada e consentânea à ordem jurídica internacional, nos termos da própria Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança e do Adolescente; e garantista em sua concepção, posto que supera o reducionista critério biopsicológico sobre o discernimento, aquele adotado no Brasil, ao tempo do Código Penal do Império e abandonado por inadequado e arbitrário ainda na primeira metade do século XX.

Ressalte-se a necessidade de distinguir imputabilidade de impunidade, uma vez que, da forma como é debatido o tema hoje, dá-se à medida socioeducativa o aspecto e o retrato da impunidade. (Liberatti, 2006, p. 65-66) traz, sob a ótica legal, essa concepção:

Há de se fazer uma breve distinção entre impunidade e inimputabilidade penal, significa uma absoluta irresponsabilidade pessoal ou social diante do crime ou contravenção penal (ato infracional) praticado, tendo como base apenas a idade cronológica. Esse é o panorama jurídico pretendido pela primeira parte do preceito constitucional do artigo 228 da Constituição Federal. A impunidade, por sua vez, é a situação daquele que escapou à punição ou que não é punido ou castigado.

As medidas socioeducativas não têm natureza de penalidade, ou seja, não se tratam de punição. Ressalte-se que o ECA é omisso no tocante à identificação da natureza jurídica dessas medidas socioeducativas, limitando-se a arrolá-las e a traçar as suas hipóteses de cabimento.

É necessário deixar claro que, em caso de ato infracional cometido por criança, ou seja, alguém de zero a onze anos de idade incompletos, são aplicáveis somente medidas protetivas, ou seja, aquelas elencadas no Artigo 101 da Lei 8.069/1991, quais sejam:

Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I – encaminhamento aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade; II – orientação, apoio e acompanhamento temporários; III – matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV – inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança e ao adolescente; V – requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial; VI – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; VII – acolhimento institucional; VIII – inclusão em programa de acolhimento familiar; IX – colocação em família substituta.

No que se refere às medidas socioeducativas, o Estatuto da Criança e do Adolescente descreveu-as em seu Artigo 112:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semiliberdade; VI – internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

Trata-se de rol taxativo e não meramente exemplificativo. Traz à baila medidas que visam educar o adolescente, para que ele reflita e não volte a cometer a mesma infração. O campo da gestão também traz mudanças na relação entre os entes federativos (municipal, estadual/distrital e nacional), com responsabilidades e competências definidas e compartilhadas, o que demanda, inclusive, maior integração entre as políticas.

As mudanças propostas pelo ECA, de conteúdo, de método e de gestão, impactaram, sobretudo, o campo da execução das medidas socioeducativas. Para que essa execução seja correta, conforme a doutrina da proteção integral, devem ser implementadas ações educativas e contextualizadas, a fim de que a medida aplicada seja, de fato, educativa. O adolescente precisa sentir-se acolhido e reconhecido como sujeito de direitos e deveres em uma sociedade, para que ele possa se educar.

Educar não quer dizer deixar de exigir o cumprimento das regras que a própria sociedade impõe. Não exigir do adolescente, seria o mesmo que ignorá-lo, o que contribuiria para uma situação de abandono, de alienação da realidade social e da sua própria realidade. Assim, “a medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração” (BRASIL, 1990, p. 96).

A falta de ação dos órgãos responsáveis pelo cumprimento das medidas socioeducativas acaba demonstrando para a sociedade um exemplo de inoperância do sistema. Isso, de certo modo, contribui para o protecionismo que, segundo Demo (2011), “deixa a criança e o adolescente inatingíveis a sanções, como se tivessem apenas direitos, não deveres” (DEMO, 2011, p. 60). A certeza da impunidade tem colaborado para discussões equivocadas de que a redução da maioridade penal é a solução para a redução da criminalidade.

Em conformidade com a Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, proposto, em 2007, para os anos de 2011-2020, o governo federal lançou o programa “Na medida certa”, integrante da Agenda Social Criança e Adolescente. Nessa perspectiva, foi priorizado o cofinanciamento pelo SUAS (Sistema Único da Assistência Social), para a criação de serviços de execução das medidas socioeducativas em meio aberto (LA – Liberdade Assistida – e PSC – Prestação de Serviços à Comunidade). É possível, portanto, identificar que, no contexto evidenciado, muitas conquistas foram efetivadas no que se refere ao segmento infanto-juvenil. Não obstante, visualiza-se que, após a promulgação da “Constituição Cidadã”, nos termos de Ulysses Guimarães, e, por conseguinte, mediante a consolidação da Seguridade Social, a questão do adolescente em conflito com a lei ganhou o espaço local, ou seja, também é atribuída aos municípios a responsabilidade pelo atendimento socioeducativo.

Nesse aspecto, verifica-se que a “Assistência Social enquanto política pública não contributiva, dever do Estado e direito de todo cidadão que dela necessitar” (Art. 1º da Lei Orgânica da Assistência Social), assume um papel de extrema importância na sociedade brasileira, visto que parcela significativa da população nacional se encontra alijada do acesso ao usufruto dos bens produzidos coletivamente.

Dessa forma, o atendimento socioeducativo, no âmbito da assistência social pública, situado nos marcos da Proteção Social Especial de Média Complexidade, objetiva prestar atendimento profissional ao adolescente e à sua família no tocante aos aspectos educacionais, de saúde, de profissionalização, dentre outros. Logo, entende-se que a operacionalização das medidas socioeducativas em meio aberto no âmbito da Assistência Social, especificamente no contexto municipal, constitui-se como um fator representativo da mudança de concepção por parte do poder público, no que se refere ao enfrentamento de uma das muitas expressões da “questão social” brasileira.

Por isso, embora seja um avanço pensar e realizar o atendimento socioeducativo em meio aberto no interior da Assistência Social, deve-se ter nítido que muitos são os entraves vivenciados por essa política pública atualmente. Isso se dá em termos técnicos, operativos, sistêmicos e também com relação à base de financiamento. De fato, a lógica punitiva e coercitiva, de adequação do indivíduo à “ordem” estabelecida não está ausente no trato da questão que envolve o adolescente e o ato infracional. Trata-se de um aspecto que ocorre tanto no âmbito do Judiciário, na dinâmica institucional da Assistência Social e que encontra apoio nos estigmas da sociedade.

Logo, no que diz respeito à análise da problemática evidenciada pelo adolescente em conflito com a lei na sociedade hodierna, ainda que o ECA tenha resultado em ganhos significativos para o segmento, verifica-se que ainda há muito a avançar.

Considerações finais

Embora seja priorizado o caráter socioeducativo, com a difusão de práticas pedagógicas e emancipatórias, pautadas na perspectiva de observância dos direitos humanos, o ranço conservador ainda é um mal do nosso século que precisa ser combatido com vigor. O presente estudo traçou o caminho percorrido pelo adolescente em conflito com a lei, a execução e o acompanhamento da medida socioeducativa em meio aberto no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) do município de Volta Redonda, na ânsia de apreender os aspectos pedagógicos da medida socioeducativa e de responder questionamentos. Sua relevância social é indiscutível.

Afinal, é dever do Estado, da família e da sociedade, de modo geral, garantir a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. Percorrendo esse caminho, foi possível ultrapassar expectativas e ansiedades pessoais que o tema provocou, para alcançar uma dimensão amplificada da situação da infância e adolescência, apresentada desde os primeiros cuidados coloniais com o público infanto-juvenil até os diais atuais. Para crianças e adolescentes, o ECA reafirmou o texto constitucional, imputando-lhes direitos com absoluta prioridade, dando-lhes garantias de proteção e respeito à sua condição peculiar de desenvolvimento. Colocou-os, sobretudo, como alvos de uma Doutrina de Proteção Integral, formando um sistema de garantia de direitos, para o bom funcionamento e articulação de todos os dispositivos e mecanismos na promoção, prevenção e defesa de seus direitos. Apesar de todas essas conquistas, contudo, verifica-se que o adolescente em conflito com a lei ainda enfrenta muitos preconceitos.

A sociedade civil e até mesmo as instituições parceiras no atendimento em meio aberto reproduzem esses preconceitos. Como demonstrado por este estudo, os adolescentes em conflito com a lei no munícipio de Volta Redonda em acompanhamento pelo CREAS, possuem, em sua maioria, um baixo nível de escolaridade, por não reconhecerem o papel da escola. A renda familiar, por sua vez, não proporciona, aos seus integrantes, condições de obterem os “mínimos sociais” para sobrevivência. Além disso, há o envolvimento com o tráfico e/ou uso de drogas lícitas e ilícitas.

A questão infracional é resultado não da incompetência familiar, como afirma o senso comum e pressupõem os apelos midiáticos, mas das dificuldades enfrentadas pelas famílias e pelos adolescentes para superarem, sem as devidas intervenções e atuações, as consequências drásticas da desigualdade social no cenário mundial, mais especificamente no Brasil. O estudo também constatou que os equívocos se iniciam onde deveriam ser coibidos: no Poder Judiciário, que não consegue estabelecer diálogo direto com o adolescente e seu responsável. Dessa forma, torna-se um órgão insensível às expectativas e às angústias geradas no processo da medida socioeducativa. O Judiciário apresenta-se, portanto, como um ambiente estritamente penal e distanciado das demandas sociais, intervindo nas mazelas da questão social, residual e pontualmente, solucionando, do ponto de vista jurídico, apenas os dados postos nas audiências, transformando-os em números representados nos processos de que tomam ciência.

As crianças e os adolescentes tornam-se visíveis às autoridades judiciais apenas na medida em que perturbam a ordem vigente. As dificuldades, no entanto, apresentaram-se com maior intensidade no processo de medida socioeducativa de PSC. A parceria entre entidades que recebem os adolescentes para cumprimento de medida de PSC e o CREAS ocorre informalmente, sem as devidas garantias de cumprimento do acordo por ambas as partes, fazendo com que o adolescente esteja sujeito às vontades das instituições.

Assim como a própria equipe ressaltou, a informalidade, representada pela ausência do Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo (a decisão foi tomada no ano de 2008 em audiência pública, conforme registrado neste estudo, mas, desde então, não foi construído), dificulta a articulação e o estabelecimento de formalidade ao processo, bem como novas parcerias. O estudo demonstrou as implicações dessa ausência e pretende estimular a construção do Plano, com os atores responsáveis.

O ECA, articulado aos demais dispositivos legais, deve ser operacionalizado por meio da participação da sociedade de modo geral. O grande avanço que o Estado democrático proporciona, é a possibilidade de intervenção e mobilização social em defesa dos interesses coletivos, que supere o processo de individualização dos sujeitos sociais. Pode-se constatar que a participação da comunidade é quase nula, quando não excludente ou omissa, diante de suas obrigações.

A aceitação inerte e a convivência com políticas sociais residuais, refere-se ao processo anacrônico e abstrato de cidadania à moda brasileira. O desafio maior que se deve superar, é a revitalização, a necessidade de se reapropriar dos espaços já conquistados e avançar sobre os que ainda necessitam ser conquistados, por meio da efetivação das políticas públicas. Isso requer o chamamento de líderes comunitários, associações de moradores e movimentos locais e a valorização da identidade local e cultural, como fonte expressiva de acolhimento ao adolescente em conflito com a lei, no intuito de incentivar a superação da questão infracional, dos direitos violados e a construção de sua própria identidade. Por conseguinte, percebe-se que a família é espaço para cuidar, mas também, a ser cuidado. Em vários casos, as relações estabelecidas entre adolescente e responsáveis estavam baseadas no conflito e nas dificuldades de resolvê-los. Portanto, a família demanda cuidados e atenções. A parceria entre CREAS e CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), no atendimento ao adolescente e familiares, deve estabelecer uma rede de proteção e de prestação de serviços sociais continuados, que objetivem o fortalecimento de vínculos.

O estudo possibilitou, ainda, a visualização da atuação dos diversos atores e o processo de interação deles nas ações socioeducativas, na perspectiva pedagógica de superação do ato infracional. Tais questões estão permeadas por preconceitos, interesses privados e dificuldades existentes no contexto social do adolescente em conflito com lei. O caminho a ser percorrido para o enfrentamento dos desafios encontrados na implementação em meio aberto no município de Volta Redonda vai ao encontro da construção do Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo e de políticas voltadas à conscientização da sociedade civil e das instituições que fazem parte do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente, para que, enfim, eles possam usufruir conscientemente de sua condição peculiar como sujeitos de direito em desenvolvimento.

 

Referências bibliográficas

CARVALHO, Raul de; IAMAMOTO Marilda. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 19 ed. São Paulo: Cortez; Lima, Peru: CELATS, 2006.

MINAYO, C. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29 ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

NETO, Wanderlino Nogueira. Por um sistema de promoção e proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes. In: Serviço Social e Sociedade, nº 83. São Paulo: Cortez, 2005.

PEREIRA, A. Criança X Menor: a origem dos mitos da política brasileira. Disponível em: http://bit.ly/2aXu26u. Acesso em: 17 mar.2011.

VOLPI, M. O adolescente e o ato infracional. São Paulo. Cortez: 1997.

 

As crianças e o adolescentes invisíveis do Brasil

Por Elisa Costa[1]

 

Aos homens e mulheres, que acima de seus cargos, desconhecimentos, preconceitos, medos e sonhos, que a despeito de nossas limitações, construíram pontes, teceram esperança e escreveram história. Começou …

As crianças invisíveis são aquelas que, mesmo nascendo em território nacional, por conta de seu recorte étnico, racial, de gênero, cor de pele ou escolha religiosa, se encontram abandonadas tanto pelo Estado, quanto pela sociedade. Não são contempladas em pesquisas oficiais do governo e, portanto, não são beneficiadas, de forma efetiva, por políticas públicas. São crianças e adolescentes, meninos e meninas, que não possuem acesso à saúde, ao lazer, à educação e à cidadania; que vivem à margem do reconhecimento e do respeito às suas especificidades. São aquelas crianças e adolescentes que não podem usufruir com dignidade de tudo o que lhes é garantido pela Constituição Federal de 1988, e que ainda se encontram na chamada exclusão normativa, ou seja, cidadãos e cidadãs de terceira categoria.

A intolerância, a violência, o abandono, o racismo, a xenofobia e a discriminação estão postas na mesa, com o protagonismo desses meninos e meninas, de crianças e adolescentes, com o olhar de suas várias infâncias. O desafio da escuta de tantos direitos violados por anos a fio – e de forma tão arraigada na sociedade brasileira –, DF. Em meio a um turbilhão de ideias e possibilidades, estávamos todos lá, num contínuo exercício de aprender e construir pontes.

Teríamos que produzir, no grupo, uma oficina de ideias – e foi isso o que aconteceu. Fomos norteados por dois questionamentos específicos, geradores dessa discussão:

  1. Quais são os pontos fundamentais para unificarmos a agenda de defesa dos direitos humanos, em especial dos direitos das crianças e dos adolescentes?
  2. Quais são os desafios e as propostas para os próximos dez anos?

Uma grande roda de conversa foi feita para tais questionamentos. Participaram ribeirinhos, quilombolas, povos ciganos, pescadores artesanais, povos do campo e de floresta, comunidades de matriz africana, indígenas, atores do sistema prisional, crianças e adolescentes em situação de rua, povos de terreiro, circenses e imigrantes.

Outra roda foi feita com gestores do governo, sociedade civil, Igreja e poder público, para dividirmos expectativas, dúvidas e possibilidades. Por fim, a última roda foi de processamento de nossas ideias, numa discussão pontual. Qualificamos a discussão.

Resultado I – rodas conjuntas

O fortalecimento da rede de serviços (Ministério Público, Defensoria Pública, assistência social), o direito à justiça e à segurança; à informação qualificada e específica; à saúde e à educação (no campo, nas comunidades). Além desses, a capacitação continuada, a formação de profissionais do Conselho Tutelar e o combate à violência policial foram os principais pontos. Sobreviver e evitar o fim das tradições, da cultura e da língua são os principais temores e desafios, ou seja, fazer parte de uma cultura que possa se adaptar aos tempos, sem perder seu traço de identidade; ter suas histórias contadas nos livros e a condição de passar suas tradições e costumes de geração em geração. Viver dignamente e poder se encontrar mais vezes, numa agenda permanente de discussão foi outra questão abordada. Então, e, por fim, escrevemos uma carta …

 

Resultado II – a nossa roda

CARTA ABERTA

Por uma Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais!

“Criança nunca vai ter direitos demais, sempre irá faltar, pois sempre vai ter criança que não vamos contemplar.” (Tiago Modena, adolescente do G 38, do Conanda)

Desde que a Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas estabeleceu, em 1989, em seu Artigo 30, o direito de crianças e adolescentes de terem reconhecidos seus pertencimentos étnico-culturais, de maneira individual e coletiva, o Estado brasileiro se viu obrigado a promover medidas específicas para incluir esse grupo em suas normas e políticas públicas, respeitando suas diversidades culturais. Porém, o ECA, ao ser promulgado, em 1990, não possuía nenhuma norma, dentre os seus mais de 260 artigos, que reconhecesse direitos específicos para crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais.

Somente com a Resolução nº. 91/2003 do Conanda e, posteriormente, com a edição da Lei nº. 12.010/2009 (Nova Lei da Adoção), é que essa exclusão normativa começou a ser corrigida – e apenas para povos indígenas e comunidades quilombolas. Isso pouco influenciou no quadro geral de inadequação e despreparo da rede de proteção para atuar com as crianças e os adolescentes de povos e comunidades tradicionais.

Ciente de que o Brasil é composto por uma ampla diversidade cultural, marcada por mais de 70 categorias étnicas (só entre os povos indígenas são mais de 270 etnias; entre os quilombolas, mais de 5 mil comunidades, além de milhares de comunidades extrativistas, povos ciganos, ribeirinhos, de matriz africana, pescadoras, rurais, faxinalenses, comunidades de terreiro, dentre tantas outras), já passou o momento do Estado e da sociedade brasileira tratarem esses grupos com a centralidade e a importância que precisam e requerem.

Não bastam mais os fragmentados ganhos jurídicos em algumas poucas medidas de políticas e planos nacionais, como o Plano Decenal de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes; o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes; o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalho do Adolescente; e o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. É necessário que o Estado e a sociedade brasileira assumam o compromisso de construir, com ampla participação de crianças, adolescentes e outros membros de povos e comunidades tradicionais, uma Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais.

Tal Política Nacional teria o objetivo de reunir e integrar um conjunto de medidas necessárias para a adequação e/ou criação de direitos, políticas públicas e ações sociais para o tratamento diferenciado das demandas, realidades e direitos desses sujeitos e de seus grupos de pertença.

Além disso, entende-se ser fundamental a atualização da Resolução nº. 91/2003 do Conanda, a fim de que abarque um conjunto maior de destinatários. É necessário que se procure avançar no desafio de garantir a adequação da aplicabilidade dos direitos das crianças e dos adolescentes aos povos e às comunidades tradicionais, dialogando sobre seus direitos coletivos e protagonismo político.

Em tempos das alardeadas crises econômica, social e política de caráter nacional, e de tantas ameaças aos direitos humanos de povos e comunidades tradicionais, construir e estabelecer uma Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais é atender a uma dívida histórica, é desconstruir a invisibilidade social forçada e é ousar em prol da efetivação da igualdade na diversidade para as crianças e os adolescentes.

Cana o drom si lungo, naxtis piras kôrkorro. (Se o caminho é longo, não se deve andar sozinho)

 

A mobilização como instrumento de organização e incidência para a absoluta prioridade da criança e do adolescente

 Toda criança e adolescente é sujeito de direito ativo e participativo[2].

 A participação integra o cotidiano de todos os indivíduos. Ao longo da vida e em diversas ocasiões, somos levados, por desejo próprio ou não, a participar de grupos e atividades. O ato de participar, de tomar parte, revela a necessidade que os indivíduos têm de se associar, de buscar alcançar objetivos que seriam de difícil consecução ou até mesmo inatingíveis, caso fossem perseguidos individualmente, de maneira isolada. A participação social e a cidadania referem-se à apropriação pelos indivíduos do direito de construção democrática do seu próprio destino. Sua concretização passa pela organização coletiva dos participantes, possibilitando desde a abertura de espaços de discussão dentro e fora dos limites da comunidade, até a definição de prioridades, elaboração de estratégias de ação e estabelecimento de canais de diálogo com o poder público.

A participação de crianças é um direito assegurado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. As crianças e adolescentes devem ser ouvidos e respeitados, em condições que considerem seu nível de compreensão e reconheçam sua capacidade de expressão nas decisões que envolvam sua vida. Toda criança e adolescente devem ser protagonistas de sua história e participar ativamente de seu processo educativo. Precisam ser preparados, informados e incentivados a se expressar como parte importante de sua formação para o exercício da cidadania e para o desenvolvimento de habilidades e atitudes proativas na vida social.

Colocar a participação em prática requer que os adultos levem em consideração as opiniões e visões de mundo da criança, em suas distintas formas de expressão e comunicação, já que estas terão um efeito direto em suas vidas (UNICEF, 2003, p. 4-5).

A interrogação que paira sobre as experiências que envolvem a participação está relacionada ao grau de domínio e de compreensão dos participantes sobre o processo no qual estão inseridos. Em primeiro lugar, participar de algo requer consciência sobre seus atos. Logo, participação consciente é aquela em que os envolvidos possuem entendimento a respeito do que estão vivenciando.

Quando uma pessoa ou grupo de pessoas agem sem saber as razões e as consequências de seus atos, a participação é restrita, estabelecida em função de alguma espécie de relação de dominação, ou seja, com base em algum tipo de poder persuasivo, determinado grupo impõe aos demais as decisões e os passos que devem ser seguidos. Em tais situações, a falta de senso crítico leva a um simples adestramento. Dentre as formas de dominação, a mais sutil – e por isso mesmo a mais perversa – é a que mantém as pessoas alijadas do acesso à informação e à educação, instrumentos fundamentais para a equalização das oportunidades e a eliminação de injustiças.

Somente a participação consciente possibilita o reconhecimento das relações de interesse e poder que, ocultas ou manifestas, tentam se desenrolar, associadas ao processo participativo.

 

Reflexões sobre a participação e mobilização de crianças e adolescentes

 […] um direito e um componente essencial no exercício da cidadania ativa. É o processo de conscientização que resulta em ações coletivas de promoção da cidadania. Refere-se a formas legítimas de participação da população na esfera pública e política (RIZZINI et al., 2005, p.8).

 

O conceito de participação e mobilização deve considerar a pluralidade de situações sociais às quais estão expostos os cidadãos. Nesse sentido, entende-se que a participação e a mobilização de crianças e adolescentes não devem estar ligadas somente ao engajamento em movimentos sociais ou outro tipo de organização. Elas passam pela consciência da realidade na qual os sujeitos estão inseridos e pela sua manifestação como cidadãos nessa realidade. Ter consciência é estar em conexão com os processos que determinam a realidade social e, também, informado sobre os direitos e deveres inerentes à condição de cidadão.

O ECA representa um marco histórico no processo de luta para a conquista do direito de crianças e adolescentes à participação. Ele contribuiu para mudar o discurso punitivo e assistencialista, ao incluir noções de direitos e respeito, instituindo a ideia de criança e adolescente como sujeitos de direito. O ECA determina também que todos os membros– família, sociedade e Estado – têm o dever de respeitar o direito das crianças à convivência familiar e comunitária, dentre outros direitos. Isso possibilitou, acima de tudo, uma revisão dos mecanismos de proteção ao bem-estar infantil, implicando em maior participação das famílias e de suas comunidades de origem.

Outro aspecto importante que ganhou força com o Estatuto foi o fortalecimento de ações de organizações não governamentais (ONGs), permitindo a criação de estruturas em nível local para expandir a participação dos representantes das comunidades e da sociedade civil em geral, em iniciativas relativas à infância e à adolescência, possibilitando um sistema de monitoramento das decisões políticas. Dessa forma, pode-se observar o empoderamento dos sujeitos na ocupação dos espaços políticos e sociais institucionalizados de participação.

O Estatuto reconheceu, ainda, que a educação é um dos elementos vitais para o desenvolvimento integral da criança e do adolescente, preparando-os para o exercício da cidadania. As escolas são espaços-chaves, que favorecem ações participativas. Assim, devem ser oferecidas condições igualitárias de acesso e permanência na escola, reconhecendo os direitos de crianças e adolescentes de serem respeitados pelos educadores; de contestarem os métodos de avaliação; de recorrerem a instâncias superiores de decisão e resolução de conflitos no âmbito escolar; de organizarem e participarem de agremiações ou associações estudantis; e de terem acesso a uma escola pública próxima ao local de residência.

Conhecer, aprender, refletir e pesquisar são direitos implícitos em qualquer projeto educacional. Por meio do conhecimento, é possível visualizar novas saídas e possibilidades e desenvolver protagonismos e potencialidades. Infelizmente, no Brasil, a educação de qualidade como direito para todos ainda é um caminho a ser trilhado.

Ainda quando falamos de participação e mobilização como instrumento de organização de crianças e adolescente, precisamos destacar que a utilização deste instrumento somente será possível quando eles forem os verdadeiros protagonistas ou sujeitos do processo. Assim, quando falamos de cidadania, só é cidadão aquele que é sujeito e protagonista. Todo o resto é instrumentalização da participação para a “domesticação”.

Com base em Freire (1987, p. 32), podemos afirmar que a participação se inicia com os envolvidos e não para os envolvidos na ação, pois só assim será possível reaver a condição humana. A postura participativa é, para Freire, pressuposto básico para o processo de libertação, pois é, ao mesmo tempo, de libertação e de humanização. Só posso me libertar se sei a que estou preso e se tenho esperança de um mundo melhor ou diferente, se acredito e estou aberto a mudanças. Não é, portanto, algo que alguém pode trazer de fora, fazer por mim, de cuja participação posso me eximir.

Dito de outra forma, só aprendemos uns com os outros, mediados pelo mundo, e só assim é possível ser totalmente humano. “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 52), ou seja, se libertam participando. Democracia e participação não podem ser aprendidas em solidão, apenas lendo ou escrevendo a respeito. É preciso vivê-las e experienciá-las com outras pessoas. Certamente deve ser possível construir espaços de socialização participativa em diferentes esferas e em diversos momentos sociais, além das possibilidades de fortalecimento dos já existentes. É preciso, no entanto, que as crianças e os adolescentes tenham autoconfiança, que possam vivenciar situações que os levem a acreditar que são capazes e estimulem a sua própria esperança.

Especialmente importante é que nós, adultos, mães, pais, professores, profissionais, etc., acreditemos que eles são capazes, que vejamos na sua diversidade aspectos positivos, capazes de renovar, de fortalecer e de embelezar a sociedade.

Concluindo

A participação aparece geralmente como um conceito centrado nos espaços políticos, na relação com o exercício da cidadania. Podemos, no entanto, perceber, por meio da reflexão proposta no presente texto, que, quando estamos nos referindo à participação de crianças e adolescentes, devemos reforçar os aspectos pedagógicos necessários para que ela seja efetiva e um processo deles.

Isso significa que ela deve ser processual e formativa e, de maneira alguma, ser restrita a espaços institucionalizados. Participação se aprende participando e democracia é algo que precisa ser praticado, incorporado, vivenciado, experienciado. Para tanto, há níveis ou passos, que devem contribuir para construir e afirmar a participação de crianças e adolescentes. À medida que isso está claro, pode-se então constituir processos nos quais eles, gradativamente, se vão envolvendo. É preciso, para que isso aconteça, respeitar e dialogar com eles, para que possamos fortalecer sua autoconfiança e alcançar resultados positivos com a sua participação. Apoiados em Freire, vimos que esse processo deve ser com eles e não para eles e deve fazer com que se sintam desafiados, comprometidos, solidários, responsáveis e protagonistas.

 

Referências bibliográficas

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Infância, Lei e Democracia na América Latina: Análise Crítica do Panorama Legislativo no Marco da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança 1990 – 1998. Trad. Eliete Ávila Wolff. Blumenau: Edifurb, 2001.

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LIBERATI, Wilson Donizeti, CYRINO, Públio Caio Bessa. Conselhos e Fundos no Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: Malheiros, 1993.

PIRES, João Teixeira. Projeto de Fortalecimento de Conselhos Municipais do Direito da Criança e do Adolescente: um projeto de pesquisa-ação focado no exercício da cidadania em alianças estratégicas intersetoriais para atuação social, envolvendo instituições relacionadas à consolidação dos direitos das crianças e adolescentes, através dos princípios da democracia participativa. Disponível em: http://bit.ly/2b9KdcZ. Acesso em: 01 mai.2006.

PINHEIRO, Ângela de Alencar Araripe. A criança e o adolescente, representações sociais e o processo constituinte. In: Psicologia em Estudo, Maringá, Set-Dec, 2004, vol.9, n. 03.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Temas de Direito da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1997.

 

Na luta pelos direitos da criança e do adolescente, onde está a diversidade (LGBT, negro, deficientes)?

Falar sobre a diversidade nos remete quase que impreterivelmente a duas questões: de um lado, existe um grupo social com melhores condições de desfrutar os bens culturais produzidos, e de outro, a um grupo que permanece à margem, privado do acesso a bens e serviços. Por conseguinte, estamos falando da questão da inclusão  ou da exclusão social. Isso significa que são necessárias políticas e ações capazes de superar os preconceitos e criar um novo modelo de sociedade no qual a diversidade de sujeitos seja cabível.

Os elementos da exclusão e as situações de inclusão não se dão por condições determinadas naturalmente. São, ao contrário, fruto de ações determinantes, apoiadas em fatores culturais, políticos e sociais. As concepções acerca da diversidade envolvem uma série de elementos advindos da cultura e da subjetividade, que permitem ou não a inclusão do outro que não é igual.

Antes, porém, de traçar uma discussão sobre o tema, é preciso perguntar o que é diferença e quem é o diferente. Numa perspectiva de exclusão social, o diferente é quem não está agregado aos eventos sociais padronizados, quem não corresponde aos padrões estéticos e aos comportamentais admitidos consensualmente como “normais”, bons e belos. Destacamos aqueles que carregam rótulos por serem deficientes ou por serem “diferentes” em algum aspecto.

No contexto da diversidade humana, é fundamental convocarmos toda a sociedade a repensar seus valores e práticas nos espaços públicos de convivência. Tais espaços abrigam diferentes sujeitos sociais, com histórias de vida e culturas marcada por normas consensuais definidas por conceitos historicamente pré-estabelecidos (ou pré-conceitos), que admitem ou não a inclusão do “outro diferente”.

Existem algumas idealizações acerca das pessoas consideradas “diferentes”, que fazem com que as práticas em relação a elas sejam baseadas em ideias de piedade e de compensação. Por outro lado, há concepções que levam à hostilidade e à segregação de “marginais”, LGBT[3], negros, índios, pobres, gordos, crianças hiperativas, etc. Nesse caso, há discursos permeados pela indignação, pela intolerância, pelo ódio e pelo desejo violento de exclusão.

É fundamental refletirmos sobre as concepções de “diferença”, sobretudo no contexto educacional. É no interior das escolas que convive uma diversidade de sujeitos sociais que compõem o universo microssocial. A convivência e a interação entre os diferentes seres humanos vão se tornando cada vez mais complexas.

Assim, os sujeitos rotulados como “diferentes” não são apenas diferentes, mas carregam todo o estigma que isso significa. Quando falamos na diversidade que envolve crianças e jovens lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersex (ou aqueles/as que são considerados/as como tal), por exemplo, o preconceito, a discriminação e a violência são ainda maiores, tanto no interior das escolas, comono contexto da sociedade.

Práticas violentas e/ou discriminatórias contra esse segmento ocorrem em lares, escolas e instituições. Jovens LGBT enfrentam rejeição, muitas vezes em suas próprias famílias e comunidades, que reprovam sua orientação sexual ou identidade de gênero. Isso pode resultar em altos níveis de exclusão social, pobreza e levar muitos deles a não ter moradia. Meninos e meninas LGBT sofrem assédio moral por seus colegas e professores, o que leva à evasão escolar. Alguns têm até mesmo seu ingresso à escola negado ou são expulsos, devido à sua orientação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida. O estigma e a discriminação contra crianças e jovens LGBT, negras, deficientes e tantos outros “diferentes”, têm efeitos negativos sobre a autoestima e estão associados a taxas mais elevadas de depressão e suicídio quando comparadas ao restante da população.

Diante desse cenário, o Estado, em seus diversos âmbitos, deve agir para garantir a diversidade de todas as crianças e adolescentes; assegurar que existam sistemas para sua proteção e apoio efetivos, incluindo a existência de abrigos e outros mecanismos de segurança para quem deles necessita. Também cabe ao Estado tomar medidas para a superação efetiva de preconceitos e estereótipos, por meio de iniciativas de combate à discriminação, sobretudo em ambientes educacionais, por meio de campanhas públicas de educação.

É necessário proteger a saúde e o bem-estar de crianças e adolescentes, inclusive por meio do acesso a serviços da rede socioassistencial e de proteção dos direitos de todas as crianças e adolescentes à sua identidade, autonomia e integridade física e psicológica. É fundamental que os órgãos de controle, as instituições de proteção e de defesa de direitos humanos, o sistema de garantia de direitos e toda a sociedade cumpram seu papel de respeitar, proteger e assegurar os direitos de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação, garantindo a participação nas discussões sobre políticas e leis que afetem seus direitos.

Referências bibliográficas

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GODOI, Ana Maria. Saberes e práticas de inclusão. Deficiência acentuada de aprendizagem: deficiência múltipla/AACD. Brasília: MEC/SEE, 2006.

KRAMER, Sônia. A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 1995.

LOPES, F. R. Inclusão: para além da formação e da legislação, uma prática social. Palestra realizada no Seminário de Formação de Educações da APAE de Tocantinópolis, maio de 2008.

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Inclusão: o que é? Por quê?Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003. (Coleção cotidiano escolar).

MAZZOTTA, Marcos José da Silveira. Educação escolar: comum ou especial? São Paulo: Pioneira, 1987.

OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Saberes Imaginários e representações na educação especial: a problemática ética da “diferença” e da exclusão social. Petrópolis: Vozes, 2004.

SILVA, Tomaz Tadeu. Identidades terminais: as transformações na política da Pedagogia e na Pedagogia da política. Petrópolis: Vozes, 1996.

 

PÚBLICO PARTICIPANTE

450 pessoas, dentre elas, representantes do governo federal e de movimentos, redes e fóruns de defesa dos direitos da criança e do adolescente, além de integrantes dos movimentos: negro, sem-terra, do campo e da floresta, de comunidades tradicionais, sem-teto e dos grupos mães pela igualdade e movimento Candelária Nunca Mais, dentre outros.

TEMÁTICAS

  • 25 anos do ECA
  • Ocupação das escolas públicas
  • Genocídio da população negra
  • Crise política no Brasil
  • Adultocentrismo
  • Diversidade
  • Direito à educação
  • Violências contra crianças e adolescentes
  • Conselhos de direitos e conselhos tutelares
  • Meninos e meninas em situação de rua
  • Adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas
  • Violação de direitos e invisibilidade de segmentos específicos de crianças e adolescentes
  • Trabalho infantil
  • Sexualidade e direitos reprodutivos de crianças e adolescentes.

 

OBJETIVOS

O Encontro Pela Absoluta Prioridade da Criança e do Adolescente funcionou como evento preparatório para a X Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Por isso, teve o objetivo de produzir insumos, a partir dos diversos campos de inserção e atuação dos participantes, tanto para o processo que precedeu a X CNDCA, como para sua realização. Além disso, foram objetivos específicos desta atividade:

  • Viabilizar a escuta de atores sociais, celebrar lutas, conquistas, perspectivas e desafios dos 25 anos do ECA, junto ao Sistema de Garantia de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes.
  • Desenhar uma agenda propositiva, inclusiva e diversa a favor dos direitos de crianças e adolescentes, considerando questões de gênero, raça e etnia.
  • Pactuar agendas comuns para garantir os direitos humanos de crianças e adolescentes.
  • Atualizar o planejamento estratégico do Conanda, qualificando o processo de preparação da X Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que será realizada em abril de 2016.

 

COMO FOI

Para encerrar o ano de 2015, ainda dentro das celebrações dos 25 anos do ECA, e dar início aos preparativos para a X CNDCA, foi realizado o Encontro Pela Absoluta Prioridade da Criança e do Adolescente. A diversidade de público foi um dos principais aspectos do encontro. Esta característica esteve alinhada com o objetivo de promover e defender os direitos de meninas e meninos, de maneira inclusiva e diversa, levando em consideração gênero, raça e etnia,  orientação sexual, deficiência, diversidades regional e religiosa, etc.

Por isso, além dos conselheiros e das conselheiras nacionais e estaduais de direitos da criança e do adolescente e dos fóruns e redes da infância e adolescência de todo o Brasil, estiveram presentes também representantes dos movimentos quilombola, em situação de rua, faxinalenses, ciganos, adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, de fronteiras, de terreiros, do negro, dos grupos Candelária Nunca Mais e Mães de Maio, dentre outros.

Debate

Análises de conjuntura marcaram o primeiro painel de discussões, cuja temática foi O Brasil que queremos para nossas crianças e adolescentes. Foi destaque, no painel, a pauta da mobilização dos estudantes secundaristas do movimento Ocupa Escola, iniciado em São Paulo, em virtude do projeto de reorganização da rede pública de ensino, proposto pelo governo do estado.

O tema 25 anos do ECA: Rumo à X Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente norteou as falas dos debatedores Humberto Miranda (UFRPE), Enid Rocha (IPEA), Rodman Santos (G38/Pará) e Tiago Modena (G38/Rondônia).

Rodas de diálogo

As rodas de diálogo aconteceram com a finalidade de ampliar e diversificar o debate. Primeiramente, foram formados grupos mistos, de crianças, adolescentes e adultos, que tiveram de discutir e responder às seguintes perguntas geradoras:

  1. Considerando que cenários políticos, econômicos e sociais afetam os direitos humanos de crianças e adolescentes, quais situações ilustram as violações praticadas por eles?
  2. A partir da sua vivência, identifique avanços que estão sob ameaça na atual conjuntura e perspectivas.

Desse mote, resultou um diagnóstico de violações dos direitos de crianças e adolescentes, sintetizado no Caderno de Insumos, posteriormente publicado. Aspectos dos direitos humanos de meninas e meninos relativos à educação, ao tráfico de drogas, aos conselhos de direitos, às medidas socioeducativas, à sexualidade, dentre outros, foram elencados pelos participantes e resumidos na publicação, esboçando um quadro de violações e desafios a ser superado, mas também mecanismos e propostas de luta e garantia desses direitos.

Encerramento

“Pula sai do chão quem é contra a redução”, foi o grito de guerra que o Bloco Eureca puxou no final da sua apresentação. O bloco, que veio de São Bernardo do Campo, São Paulo, realizou um cortejo de encerramento do Encontro Pela Absoluta Prioridade da Criança e do Adolescente. Sambas-enredos e sambas de roda pelos direitos da infância e da adolescência estavam no repertório do grupo, formado exclusivamente por crianças e adolescentes. “Queremos vez, queremos voz, não preciso de adulto para poder falar por nós” emendou o bloco na última canção.

O encerramento do encontro, contou com a participação do secretário especial de Direitos Humanos do governo federal, Rogério Sottili, do presidente e do vice-presidente do Conanda, Rodrigo Torres e Fábio Paes, respectivamente, e da diretora da Flacso Brasil, Salete Valesan.

Na ocasião, foi feita a leitura da Declaração Pela Absoluta Prioridade da Criança e do Adolescente, que sintetiza as discussões e as demandas levantadas durante os três dias de encontro. “Estamos aqui para pactuar uma palavra do passado, presente e futuro. Estamos todos aqui para pactuar o acordo de uma agenda propositiva em favor dos direitos das crianças e dos adolescentes”, afirmou Fábio Paes.

Rogério Sottili destacou a importância histórica da pactuação em torno dos direitos da criança e do adolescente acontecer no dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos. “Comemorar o Dia Internacional dos Direitos Humanos com uma resolução dessas, depois de um debate de três dias, com pessoas que representam o que existe de melhor na discussão do tema dos direitos de crianças e adolescentes, com tanta representatividade e Estados participantes e com lideranças de crianças e adolescentes que estão se constituindo como protagonistas, é histórico”, afirmou.

 

QUE LEVAMOS

A pluralidade de opiniões e a diversidade de movimentos sociais, que frequentemente não estão inseridos no debate dos direitos da infância e adolescência, foram a principal característica do Encontro. Isto possibilitou um rico intercâmbio de informações e vivências, que resultou, por exemplo, no Caderno de Insumos para a 10ª CNDCA, mas também na construção de um espaço – mesmo que por alguns dias – de articulação e aprendizagem.

 

QUEM PARTICIPOU

  1. Adolescente Aprendizagem
  2. Aldeias Infantis SOS
  3. Bloco Eureca
  4. Casa de Cultura
  5. Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca/CE) Conselheiros tutelares
  6. Circo Belô
  7. Coletivo Feminista
  8. Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag)
  9. Conselhos Estaduais da Criança e do Adolescente (Cedica)
  10. Criança não é de Rua
  11. Desabafo Social
  12. Escolas de Conselhos
  13. Faxinalenses
  14. Federação das Apaes – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
  15. Fórum Colegiado Nacional
  16. Fórum DCA
  17. Frente Nacional contra a Redução da Maioridade Penal
  18. Fundação Xuxa Meneghel
  19. G38
  20. GEMA
  21. Grupo Afro-cultural Coisa de Negra
  22. Haitianos
  23. Instituto da Infância (IFAN)
  24. Mães pela Igualdade
  25. Marcha das Mulheres Negras
  26. Movimento Bandeirantes
  27. Movimento do Acolhimento
  28. Movimento dos Ciganos
  29. Movimento dos Escoteiros
  30. Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
  31. Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
  32. Movimento em Aprendizagem
  33. Movimento em Defesa de Pessoas com Deficiência
  34. Movimento Indígena
  35. Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu
  36. Movimento LGBT
  37. Movimento Nacional de Meninos e Meninos de Rua
  38. Movimento Negro
  39. Movimento sem Fronteiras
  40. NACI
  41. Neca – Associação dos Pesquisadores de Núcleos de Estudos e Pesquisas sobre a Criança e o Adolescente
  42. Oficina de Imagens
  43. Plan Internacional
  44. Povos Tradicionais de Matriz Africana
  45. Quilombolas
  46. Rede ECPAT
  47. Rede Nacional de Defesa do Adolescente em Conflito com a Lei (Renade)
  48. Rede Primeira infância
  49. Ribeirinhos

 

PRODUÇÕES

Varal de cartas: Os participantes e movimentos presentes foram incentivados a escrever cartas abertas e públicas ou moções, destinadas aos órgãos de governo responsáveis por políticas de promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, caso os grupos considerassem necessário marcar posições e manifestar reivindicações. As cartas foram expostas em um varal, no hall do local do encontro.

Mapa situacional: Foi inserido um mapa do Brasil na entrada do Hotel Carlton, no qual as pessoas inseriram seus nomes em pequenos pedaços de papel e os colaram nos seus Estados de origem. O objetivo dessa dinâmica foi registrar, territorial e plasticamente, quem esteve presente.

Campanha um minuto pela infância: Ao longo do encontro, foi realizada a produção de vídeos da campanha Um minuto pela infância, em que participantes, painelistas, representantes dos movimentos sociais e do governo federal puderam expor, em um minuto, suas opiniões e compromissos com a proteção dos direitos de crianças e adolescentes. Os vídeos foram editados por uma equipe de produtores audiovisuais e disponibilizados no canal do YouTube Mais direitos, menos redução , como também e exibidos, no auditório, nos intervalos das atividades: https://www.youtube.com/channel/UCv8Qdj3IqPnpGNCtplbERYg

Caderno de Insumos: Caderno que sistematiza os debates dos adultos que aconteceram no Encontro Pela Absoluta Prioridade da Criança e do Adolescente. Acesse este conteúdo na linha do tempo online do Projeto: http://maisdireitosmenosreducao.redelivre.org.br/

Poesia

O que queremos, que sistematiza a participação do grupo das crianças

Um lar legal.

Estudar num lugar gostoso, salas coloridas, bem divertidas.

Falar mesmo que seja errado.

Ter amiguinhos.

Ter o arco-íris.

Paz e amor.

 

DECLARAÇÃO PELA ABSOLUTA PRIORIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Nós, conselhos, organizações, redes, movimentos, coletivos, grupos e demais participantes reunidos em Brasília/DF, de 08 a 10 de dezembro de 2015, no encontro PELA ABSOLUTA  PRIORIDADE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, realizado no marco dos 25 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no dia da comemoração dos 67 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, reafirmamos nosso compromisso com a promoção, proteção e garantia dos Direitos das crianças e adolescentes.

Nesse momento em que o País passa por um cenário de risco de retrocessos dos direitos já conquistados a partir das lutas históricas e contidos nos marcos legais, declaramos:

  • a nossa defesa do Estado democrático de Direito brasileiro, sem retrocessos impostos por interesses particulares e antidemocráticos;
  • a absoluta prioridade para a ampliação de direitos de crianças e adolescentes e o não retrocesso frente aos direitos já conquistados, hoje ameaçados no Congresso Nacional e por cortes orçamentários;
  • a importância da manutenção e ampliação dos espaços de participação social, reformulando os seus marcos regulatórios, para contemplar a participação formal de crianças e adolescentes;
  • a necessidade de consolidar a construção da Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, concretizando o ECA e responsabilizando os entes federados;
  • a prioridade, nos orçamentos federal, estadual e municipal, para o financiamento das políticas públicas que garantam os direitos de crianças e adolescentes;
  • a implementação e o fortalecimento das políticas públicas de promoção da equidade, de forma a garantir a igualdade na diversidade, considerando as questões de gênero, racial e regional, para os povos indígenas, ciganos, ribeirinhos, quilombolas, migrantes, da floresta, do campo, de fronteiras, bem como para a população de rua, LGBT e com deficiência;
  • a nossa indignação perante o avanço da violência em nosso país, tendo o Estado brasileiro como um grande violador dos direitos humanos, por ação ou omissão, e de quem aqui cobramos políticas públicas que respeitem os direitos de todos os cidadãos e todas as cidadãs brasileiras;
  • a importância de uma ação de Estado que possa garantir o direito à vida para nossas crianças, adolescentes e jovens, em especial, para a população negra e indígena.

Por fim, reafirmando uma perspectiva de articulação e mobilização para o desenvolvimento de uma agenda democrática e afirmativa em direitos humanos das crianças e adolescentes, esse encontro promoveu espaços de reflexão, avaliação e perspectivas acerca dos direitos humanos, com o objetivo de fortalecer o processo de participação para a X Conferência Nacional e avançar na construção de uma Política Nacional de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes.

[1] Conselheira do Conanda.

[2] Disponível em: http://bit.ly/2b0UwTO. Acesso em: 06 ago.2016.

[3] Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.